No 25º aniversário do mítico clube de rock lisboeta, músicos e intervenientes recordam os anos de ouro do ROCK RENDEZ VOUS.

 O ANTIGO CINEMA Universal, situado na Rua da Beneficiência, nº 175, exibia o seu néon de 12 metros anunciando a chegada da primeira verdadeira sala de espectáculos rock portuguesa. Lá dentro ouviam-se os temas do acabado de editar (Julho de 1980) "Ar de Rock", de Rui Veloso, inaugurando assim dez anos que ficariam para a história e que mudariam para sempre o panorama da música portuguesa. Aconteceu na noite de 18 de Dezembro de 1980.

Em poucos anos o Rock Rendez Vous (RRV) transformou-se numa sala mítica. Foi lá que os Xutos & Pontapés deram os primeiros passos, que se formaram os Pop Dell’Arte, que actuaram pela primeira vez em Portugal os Killing Joke, os Teardrop Explodes ou os Chameleons.

Era ali que se tomava contacto com o movimento pós-punk, através das tardes e noites do radialista António Sérgio, e foi graças ao RRV que se gravaram 140 discos de novas bandas e se realizaram 1500 concertos em dez anos. Foi através do RRV que se formou a editora – Dansa do Som - que lançou discos dos Ocaso Épico (banda do malogrado Farinha Master) ou o primeiro álbum dos Xutos ("Cerco"). E acima de tudo naquela sala que se realizou o primeiro concurso de Música Moderna Portuguesa, que deu a conhecer bandas como os Mão Morta, M’as Foice, Ena Pá 2000, Quinta do Bill, Sitiados e Ritual Tejo (cujo primeiro nome foi Easy Gents).

«A indústria musical em Portugal não existia e estava tudo a começar; o que existia em termos de produção era muito ligado ao fado. As multinacionais não estavam instaladas, com excepção da Valentim de Carvalho, e mesmo assim não tinha uma actividade por aí além. A nível de música moderna - rock e pop - era todo um mundo novo que se estava a criar. E o RRV foi importantíssimo para isso», explica Adolfo Luxúria Canibal, vocalista dos Mão Morta. «Até tínhamos excursões. As pessoas tinham de vir ver o Papa. Era a única sala de espectáculos rock em Lisboa e no país. Era a Meca daquela gente», repara Mário Guia, proprietário do espaço.

A sorte de ter «um» Rock Rendez Vous

«Actuar no RRV era uma coisa almejada por uma banda, tanto ou mais do que fazer um disco», conta Adolfo Luxúria Canibal. E actualmente, há alguma sala de espectáculos como o RRV? «Não», garante taxativamente o vocalista dos Mão Morta. «Criaram o Hard Club, em Gaia, mas não é tão caloroso. É muito bonito… demasiado bonito. É menos clube e mais um bar com vista. Havia o Le Son, em Coimbra, que parecia uma daquelas salas das sociedades cooperativas já decadentes. Tinha boas condições, mas também está fechado. O que há são teatros fechados ou salas bizarras. Interessantes, mas não possuem a mística, a intimidade e a concentração que o RRV conseguia», resume Adolfo Luxúria Canibal.

Outro ponto forte do RRV eram as matinés, com os super-êxitos da época como a versão de «Ziggy Stardust», pelos Bauhaus; «Ball of Confusion», dos Love and Rockets, «Heaven», dos Psychedelic Furs, mais os New Order, The Sound ou os Chameleons. Na opinião de João Palma, frequentador assíduo do RRV que chegou mesmo a ocupar o palco (tocou com os Ocaso Épico, por exemplo), o RRV «era uma sala com o tamanho justo para concertos de pequena dimensão, e isso foi importante. O que acontecia era que os concertos de bandas estrangeiras eram no estádio d’Os Belenenses ou no Pavilhão de Cascais, e isso fazia com que apenas viessem cá bandas que conseguissem encher esses espaços, tipo Whitesnake. O RRV permitiu que viessem cá tocar os The Sound, Chameleons, Killing Joke... Bandas interessantes e actuais que nunca encheriam um estádio. Quanto às bandas nacionais, tinham um espaço para tocar com material e condições como alternativa às salas das sociedades recreativas e clubes desportivos».

Os gloriosos anos… 80

Portugal não viveu o «Summer of Love». Viveu os anos 70 imerso em conspirações e a preparar uma revolução. Portugal viveu 48 anos em ditadura, 13 dos quais em guerra colonial. João Peste, vocalista dos Pop Dell’Arte, frisa que «as consequências económicas e políticas da queda da ditadura e da perda do império só podiam provocar uma grande confusão na cabeça das pessoas. E em termos culturais ainda mais, porque de repente tanto parecia que se tinha acesso a tudo como se considerava algumas coisas alienantes. No início dos anos 80 (de 81 a 83) trabalhava numa loja de discos em Campo de Ourique e as pessoas nem sabiam o que era um disco».

Este era o panorama português no que respeita à música. Proliferavam os grupos de baile, as festas populares, o fado e pouco mais. Com o fim da ditadura, em apenas seis anos, deu-se o boom da música moderna portuguesa, cantada em português. Em 1980, "Chico Fininho", de Rui Veloso, estava a fazer sucesso nas rádios e a transformar-se num hino da geração rocker portuguesa dos anos 80. Outras bandas seguiram as pisadas de Veloso, como os UHF, os Heróis do Mar, os GNR ou os Táxi, e poucos anos depois os Xutos & Pontapés, os Mão Morta ou os Pop Dell’ Arte. E se os primeiros emergiam das influências punk dos anos 70, os segundos são quase como que filhos do RRV, o berço do boom da música moderna portuguesa.

Para isso muito contribuiu o primeiro Concurso de Música Moderna (CMM) do RRV, iniciado em 1984 e que contou com seis edições (até 1989). Mário Guia, fundador do clube, conta como tudo se processava: «Colocava anúncios a perguntar quem queria ir tocar ao RRV e depois mandavam-me cassetes. Só que a maior parte dos que apareciam eram grupos de baile, as bandas pop rock eram poucas. Consequentemente, não facturávamos e começámos a fazer o concurso, para arranjar bandas que fossem tocar lá. E resultou de tal forma que chamou a atenção dos media e trouxe gente interessante. Tenho em casa mil cassetes, cada uma com quatro originais inéditos. São as cassetes de inscrição», conta.

As inscrições estavam abertas a todas as bandas, desde que cantassem em português e não tivessem nenhum álbum editado. Para o primeiro concurso, Mário Guia recebeu 101 cassetes. «Havia boas bandas, mas depois havia aqueles que tocavam mal mas que tinham qualquer coisa e por isso, a partir do segundo concurso, resolvemos criar o prémio originalidade», diz ainda. Prémio que foi atribuído a bandas como os Mão Morta ou os Pop Dell’ Arte – que, curiosamente, marcaram mais que as bandas que ganharam o prémio principal. «Todas as bandas que ganharam o primeiro prémio acabaram», comenta Mário Guia.

João Peste atribui importância capital ao RRV na formação de novas formações: uma vez apurada, a banda «dava concertos e tinha logo um tema num disco. Isso fez com que uma série de pessoas começasse a pensar em formar uma banda, arranjar sítios para ensaiar, a trocar conhecimentos, referências musicais, emprestar discos. E isto num Portugal que tinha aquelas condicionantes culturais». A reflexão chega mesma a implicá-lo directamente: «Pergunto-me se teria formado uma banda se não houvesse o concurso RRV».

Quatro anos após o encerramento do RRV, a RTP e Mário Guia ainda tentaram reviver os concursos do RRV organizando o sétimo (e último) concurso de música moderna. Gravado no cinema Odeon, nos Restauradores, durou três meses e concorreram mais de 400 bandas. Os Drowning Men foram os vencedores. O Prémio de Originalidade, esse, coube aos Ornatos Violeta.

A Dansa do Som

Mário Guia decidiu gravar os concertos que decorriam durante os concursos e para os editar criou a Dansa do Som. Em 1985, foi lançado "Ao Vivo no Rock Rendez Vous 1984", que apresentava as gravações de algumas bandas que passaram pelo primeiro concurso de música moderna. A tiragem de 500 cópias foi oferecida aos clientes habituais da casa. A ideia pegou e, a partir daí, outros discos foram surgindo, como o já citado primeiro álbum dos Xutos, dos Ocaso Épico, e Quinta do Bill. Guia recorda que a totalidade dos concertos era objecto de gravação. Infelizmente, desse riquíssimo espólio «quase nada» terá sobrado. «As bandas arranjavam maneira de subornar o Pita [técnico de som], que lhes dava as cassetes», conta entre risos.

A queda de um império

O nº 175 da Rua da Beneficiência, em Lisboa, é actualmente uma pastelaria e um prédio de habitação (175 A). Do RRV, que encerrou em Julho de 1990, não resta nada. Só as memórias - e essas já se sabe que são muitas. Mário Guia tinha 36 anos quando abriu o RRV. Sempre foi interessado por música e chegou mesmo a fazer parte dos Ekos, banda formada em 1964. Uma fase que acabou para dar lugar a um trabalho na área dos têxteis. Área que, felizmente, o obrigava a viajar muito, principalmente para Inglaterra. «Foi aí que tomei contacto com os clubes, e pensava sempre por que é não havia salas daquelas em Lisboa». De regresso à capital, Mário Guia encontrou o local ideal (um antigo cinema no Bairro Santos, perto da Praça de Espanha e de Sete Rios) e transformou-o no RRV. E porquê Rock Rendez Vous? «Porque era rock e era um encontro com o rock». Estava aberto todas as noites, excepto aos domingos - em que só abria à tarde para as matinés. Os tempos áureos prolongaram-se até 1989, com os concursos e noites de sábado a abarrotar (a entrada custava 300 ou 400 escudos, com direito a duas cervejas). O objectivo era fazer uma sala à imagem de um clube inglês de finais dos anos 70, início dos anos 80. Mas cedo as consequências deste ideal se começaram a fazer sentir.

«A casa era só procurada pelos homens, porque as mulheres naquela altura saíam pouco, mas quando o faziam gostavam de ter as atenções concentradas nelas e ali não tinham - a música e o palco é que contavam. Sentiam-se mal. Só iam aquelas que estavam viradas para a música e eram muito poucas. Mas a caixa registadora não se compadecia com essas coisas. Facturava pouco. Então fiz a experiência de só entrarem homens acompanhados, só que não resultou durante muito tempo», conta Mário Guia.

Mas o grande problema do RRV era o facto de ser uma casa para uma elite. «Nem toda a gente ouvia aquele tipo de música», diz. Chegou-se a um ponto em que não havia bandas para tocar, daí a criação dos concursos. Mas havia sempre dívidas. «A partir de 86 comecei a ver que aquilo estava a cair. Era sempre uma elite que ia lá. E depois já só havia dois concertos cheios por mês», lamenta.

Se tivesse sido mais comercial tinha tido um fim diferente? «Não. Quando o António Variações tocava a casa estava vazia. Quem gostava dele eram pessoas simples que não iam ao RRV. Quem ia ao RRV não gostava do Variações. Aos poucos as pessoas deixaram de ir porque começaram a abrir discotecas noutros lados e deixámos de ter o exclusivo. Em relação à música ao vivo continuávamos a ter público, principalmente com as bandas estrangeiras, e depois com os GNR, os Xutos ou os Mão Morta. Mas não chegava porque as despesas eram elevadas. Agora é que dava. Estou a ver se convenço o proprietário da discoteca W a fazer lá um Pop Rendez Vous. Fazer algo mais abrangente porque não acredito que o rock cá se aguente por muito mais tempo», remata Mário Guia.

ARTIGO DE ANA BAPTISTA / BLITZ