"Portugal" e "Saudade": era difícil ao país provinciano e trôpego de uma revolução mal resolvida acatar títulos assim. Os Heróis do Mar deram um novo rosto à música portuguesa, e tornaram-se eles próprios um mito que, ainda hoje, poucos conhecem.

"Paixão - O Melhor dos Heróis do Mar" traz de novo à baila o nome de uma das melhores e mais importantes bandas de sempre da pop nacional. Com as lacunas inerentes ao facto da colectânea apenas contemplar o material gravado pelo grupo entre 1981 e 1985 para a Polygram, deixando de fora um álbum como "Macau", mas devolvendo intactas as características que ainda hoje são sinónimo de desafio e originalidade.

Na época em que o grupo de Pedro Ayres Magalhães, Rui Pregal da Cunha, Paulo Pedro Gonçalves, António José de Almeida e Carlos Maria Trindade, surgiu, escassos oito anos decorridos sobre a revolução de Abril, houve quem lhes chamasse "fascistas" por agitarem bandeiras com a Cruz de Cristo e cantarem canções como "Brava dança dos heróis". Então, como hoje, era difícil ser-se português para além das conveniências "progressistas" e propagar uma noção mais profunda da história de Portugal, com base nos mitos e numa tradição de séculos. Mas os Heróis do Mar, mais do que ideólogos, foram um dos primeiros grupos a trazer para a música portuguesa um conceito estético que passava pelo espectáculo, a moda, a poesia e uma música que, passados mais de 20 anos, continua a soar moderna.

Pedro Ayres de Magalhães, letrista, mentor e baixista da formação original, recordou para o PÚBLICO algumas das peripécias e conceitos inerentes a essa aventura.

On the road

"Levávamos uma vida de rockers, de aventureiros. No meu caso, parece que foi ontem, nunca tive férias nos últimos 18 anos, não houve interrupções. Ser rocker é escrever canções, viajar com elas. Escrever poemas na estrada, colher impressões dos lugares e das pessoas, abrir-se às circunstâncias. Era o 'on the road' Kerouakiano..."

Ideia da década

"Embora tivéssemos sido considerados uma das dez melhores bandas da Europa, pela "The Face" e pela "Rock & Folk", e a "Actuel" nos tivesse considerado uma das cem melhores ideias da década, o certo é que, por cá, nunca tivemos nenhum dinheiro nem apoio, nem para a casa, nem para o carro, nem para as contas nem para nada... Foram muitos anos de uma vida difícil".

O que é que se podia fazer?

"Os Heróis do Mar, além da música, construiram uma imagem. Mas as massas não perceberam o seu significado. Nos anos 80 não existia ainda uma cultura do vídeo, do filme rock, as pessoas iam aos nossos concertos e não sabiam o que haviam de fazer. Havia apenas uma minoria de esclarecidos que dançava".

Celebração

"Sentíamos a necessidade de dotar o nosso país de um reportório nacional. De conhecer o país e de falar dele, de ter uma opinião sobre o que era melhor para Portugal. Encontrámos uma forma original de celebrar a Nação".

Conversa de surdos

"Trouxemos a inovação mas ela foi fruto de um trabalho diário. Em troca recebemos incompreensão. Apenas uma minoria de pessoas entendeu. Faltava uma cultura nova que nos faça sentir colectivamente e entender do que é que se está a falar. E hoje é ainda mais aflitivo, a situação piorou. Mesmo as pessoas que têm o poder e os meios de propaganda à disposição, sentem dificuldade em explicar o que é que estão a fazer".

Amor sem retribuição

"É preciso não esquecer que, além do "Amor", que foi um êxito na rádio sem precedentes na música portuguesa de então, e vendeu cerca de 50 mil exemplares, os nossos discos acabavam por soar um bocado complexos. Não estou a falar em vanguardismos, mas de serem demasiado densos - tinham informação a mais para aquilo que era frequente aceitar-se num disco, com o estatuto que era conferido ao músico popular em Portugal. Se calhar eram apenas para o público das universidades... Éramos um grupo elitista. Não nos podíamos comparar às vendas do Rui Veloso ou dos Trovante."

O conceito

"O nosso conceito envolvia a música, a poesia, o teatro, a moda, a comunicação de imagem. Mas se os Heróis do Mar são hoje um grupo 'histórico', é sobretudo pela divulgação do seu nome e não do seu conteúdo. As metáforas que foram cantadas e corporizadas por nós ainda hoje não são conhecidas."

Aprender com a faena

"Toda a gente que faz música em Portugal ou que tem a intenção de a escrever, teria muito a aprender ao inpirar-se no que a gente fez, porque tínhamos muitas soluções a nível das influências musicais, da construção, das orquestrações, até das próprias soluções técnicas de gravação dos discos. Também da estruturação do discurso cantado e das palavras que foram escolhidas para a grande faena dos Heróis do Mar. Foi a nossa liberdade que permitiu a grupos como os Delfins, Polo Norte ou Santos e Pecadores, conseguirem imaginar-se como tal, como autores de música em Portugal".

Estação de serviço

"Havia ministérios dentro do grupo. O Rui Cunha era o cérebro da imagem. Ele e o Paulo eram os cérebros da roupa e da animação 'anglo-americana'. O Tó Zé, com a experiência que trazia dos Tantra, era um génio da organização de concertos num país onde não havia produção de concertos. O Carlos Maria era um génio da música, como ainda hoje é. Eu tinha a determinação, uma permanente disponibilidade, estava lá quando não estava mais ninguém. Eu talvez fosse apenas a personificação de um serviço aquela organização".

O crepúsculo dos ícones

"Houve gente nalguns meios de comunicação que não quis que as pessoas percebessem, apostada em confundir. Um movimento determinado a transformar os Heróis do Mar num ícone de um regresso da Direita, a associar-nos aos paraquedistas de Tancos, aos comandos do Jaime Neves e trinta por uma linha. Depois vim a saber onde é que isso foi combinado, porque foi efectivamente combinado, com votos a favor e votos contra. Durante pelo menos dois anos não conseguimos ir tocar a Sul de Setúbal, no Alentejo, porque éramos 'fascistas'. Chamaram-nos fascistas, a putos sem protecção nenhuma que apenas queriam reclamar uma herança histórica, numa altura em que nem na palavra 'pátria' se podia falar. Lançavam-nos: 'Querem é a herança do Salazar!', quando o que pretendíamos era a criação de um showbiz civilizado. Fazíamos tudo como uma companhia de ciganos independente."

ARTIGO DE FERNANDO MAGALHÃES PUBLICADO NO JORNAL PÚBLICO EM 9 FEVEREIRO DE 2001