Trilhos do mais famoso "freak" português *
Há vinte anos, Rui Veloso lançava o álbum "Ar de Rock", que marcou a entrada em cena de uma nova geração na música portuguesa. Em simultâneo, saltava para a fama uma personagem que acabou por se confundir com o próprio cantor: Chico Fininho, esse "freak" de gema, que "gingava pela rua sempre cheio de speed, curtia uma trip de heroína e farejava a judite em cada esquina". Em suma, o "maior da Cantareira". O criador da figura, Carlos Tê, guiou a PÚBLICA por alguns dos percursos deste herói que, apesar de fictício, estava bem ancorado na realidade social portuense desse tempo. Sem o Chico Fininho, o rock português não teria sido o mesmo. Mas, vinte anos depois, a sua lenda desbotou. Tê aponta: "Se ele ainda existir, deve andar por aí a arrumar carros".
É talvez o mais famoso "freak" português de todos os tempos, apesar de nunca ter existido, a não ser nas espiras de um disco. Foi concebido no útero de uma guitarra eléctrica, nasceu num parto de três acordes em "blues" mas logo correu para o gira-discos e se empoleirou no prato, refastelando-se nos três minutos de glória proporcionados por uma canção pop. Daí pairou numa posteridade discreta da qual caberá, de vez em quando, às gerações seguintes, definir os contornos.
O Chico Fininho nasceu há vinte anos (o mesmo é dizer, mais ou menos um século na vertiginosa escala da pop) e assombra agora os calendários. Rui Veloso catapultou-o para a fama em 1980, no disco "Ar de Rock" e, não obstante a aparência de ressurreição que uma boa efeméride sempre gera, a verdade é que, se a personagem era verosímil e tinha base sociológica há duas décadas, hoje dificilmente aguentaria o confronto com a realidade. Já praticamente não há chicos fininhos e os poucos que se poderão encaixar razoavelmente na forma original não passarão de arremedos já muito desbotados. Deste modo, o "freak" indolente e desengonçado que percorria as ruas do Porto, "da Cantareira à Baixa", e "gingava pela rua ao som do Lou Reed e sempre cheio de speed", tem colada ao rosto, como uma etiqueta, a impressão digital de uma época que poderá nunca vir a ser reeditada. De 80 para cá, o país mudou e de que maneira e com ele todos os chicos fininhos que por aí flanavam. Na melhor das hipóteses, o Chico Fininho terá simplesmente deixado de o ser no ano 2000, convertendo-se de marginal desenrascado em mais um anónimo membro da comunidade com os impostos em dia e voto obediente na urna. Ou de como pôde o Chico Fininho de gangas coçadas e blusões de couro em segunda mão tornar-se no senhor Francisco Fino de fato cinzento, gravata lisa e poucos sorrisos...
Há vinte anos, porém, a descrição do Chico Fininho era tão vívida, a canção era tão sugestiva, que muitos julgavam que ele era alguém de carne e osso, que com sorte poderia ser encontrado num qualquer café do Porto, sendo detectável pela sua indumentária ou pelo seu inconfundível calão urbano, recheado de termos como "shoot", "merda" (como sinónimo de droga) "trip" ou "judite". O próprio Rui Veloso teve alguma dificuldade em impor uma personalidade própria, já que muitos chegaram a suspeitar que o "freak" fosse uma espécie de "alter-ego" do cantor, uma reencarnação que Veloso usasse para singrar no "underground" citadino.
Mas, por irónico que pareça, o Chico Fininho é anterior à própria emergência de Rui Veloso no mundo do espectáculo. O seu parceiro Carlos Tê é que o criou, escrevendo o poema por alturas de 77, ou seja, ainda antes de conhecer Rui Veloso e é também ele, ao contrário do que geralmente se julga, o autor da música. Na sua versão original, o "Chico Fininho" gingava em "slow-motion" num ritmo pachorrento, o suficiente, porém, para acender pela mão do próprio Tê alguma emoção nas festas de liceu e encontros de amigos. Quando Rui Veloso entrou em cena, é Tê que o conta, duas coisas aconteceram: o Chico Fininho passou a ter a conduzi-lo, já não a mão pesada de alguém que "tocava mal", mas os dedos hábeis de um outro que tocava guitarra excepcionalmente bem, e aprendera a domar o instrumento respondendo aos solos de B. B. King e John Lee Hooker; por outro lado, o arranjo superveniente fez o milagre de transformar a cadência adiposa dos blues num irrefreável galopar que muito devia ao "rock'n'roll" dos primórdios, dessa época heróica em que se abria para os músicos o sortilégio de um novo e imenso território virgem por explorar. O "power trio" que, sob a liderança de Veloso, assentava em Zé Nabo (no baixo) e Ramon Galarza (na bateria) garantiu a mistura definitiva para uma receita cujo sucesso poucos ousariam prever. É óbvio que, na época, já o rock tinha uns bons vinte e cinco anos de vida e nada daquilo era verdadeiramente novo mas, num país que ainda mal desabrochara para as múltiplas ramificações da música eléctrica, o gesto do pioneiro Veloso conferiu-lhe a importância e o ineditismo de um "beatle" lusitano. Pai ou não dessa criancinha (tantas vezes abortiva) a que se chamou rock português, a verdade é que Rui Veloso foi um incontornável parteiro, uma preciosa ajuda ao nascimento.
E assim caiu o Chico Fininho nas bocas do mundo. As crianças deliciavam-se com o surgimento de palavras interditas como "merda" (Tê recorda o facto de "Chico Fininho" ter chegado a constar do índex da Rádio Renascença), a linguagem dos "freaks" ganhava dignidade lexical e ia conquistando palmo a palmo um lugar na mitologia urbana. Como refere Carlos Tê, "nunca foi minha intenção escrever sobre grandes sentimentos e relações"; em alternativa, o letrista debruçava-se sobre as "pequenas coisas do dia-a-dia", as figuras típicas da cidade e de uma certa cultura juvenil, a veia descritiva de ambientes do quotidiano e a exploração de alguma toponímia. O lirismo de um "Porto Sentido", por exemplo, não é mais do que essa tentativa de captar num instantâneo poético o espírito de uma paisagem citadina, desse Porto com o qual desde sempre Tê cultivou uma relação "ambígua", de quem lhe ama a luz, a cor e a alma mas lhe abomina os acessos de provincianismo. E foi deste modo que a canção se converteu numa espécie de hino oficioso da cidade...
A própria Cantareira (de que muitos portuenses ouviram falar pela primeira vez por causa do Chico Fininho) é uma simples zona de pescadores junto ao rio Douro que só por um mero acaso poderia ser confundida com um paradeiro de "freaks". A menção deste local na canção deve-se prosaicamente ao facto de ele constituir uma escala frequente nos passeios habituais de Carlos Tê ao longo da zona ribeirinha. O amigo de Rui Veloso morava, então, no Bairro da Pasteleira, não longe da Foz, e costumava descer a pé em direcção ao Passeio Alegre e ao Jardim António Cálem para às vezes só terminar na vila piscatória da Afurada (também tema de uma canção em "Ar de Rock") após uma travessia do rio de barco.
Por que não localizar na Cantareira a morada do Chico Fininho? Afinal, podia ser aí ou noutro lugar qualquer. Ele só precisava depois de andar na rua, fazendo da cidade o seu "faroeste" de eleição, utilizando os cafés como "saloons" e as retretes como cavalariças para recarregar baterias, injectando mais uma "trip" de heroína e sempre de olho na "judite" que poderia estar à espreita numa esquina. E tudo ao som do Lou Reed, ele próprio um famoso viciado em drogas, só que de Nova Iorque e não da Cantareira.
Se porventura entrasse no Centro Comercial Brasilia, inaugurado em finais de 1976, o Chico Fininho teria ainda a oportunidade de se cruzar com a famosa "rapariguinha do shopping", outra das personagens-tipo criada por Tê para o "Ar de Rock". Mas se os dois falassem um com o outro, provavelmente não conseguiriam ir além de um diálogo de surdos. Uma menina afectada por tiques de sobranceria de quem se julga pertencer a uma espécie de "aristocracia do comércio" (o "shopping" era o último grito dos hábitos de consumo) dificilmente teria coisas em comum com um "freak" desalinhado. A rapariga "bem vestida e petulante, com um olhar rutilante e os sovacos perfumados" ficaria logo a lamentar "não haver primeira classe" que a livrasse do convívio com aquela figura e daria logo um rumo diferente ao seu andar, aconchegando melhor ao peito a sua "revista de bordados".
Esta é também uma figura que o tempo viria a tornar irrelevante. Como lembra Tê, os "shoppings" são hoje uma banalidade e já nada distingue as empregadas de balcão que lá trabalham das outras. Entretanto, o espírito da rapariguinha do shopping terá emigrado para outras paragens. Tê nem precisa de o procurar muito, já que o encontra actualmente nas "modelos", devido à "importância desmesurada" que é atribuída à moda. As novas estrelas já não estão nos ecrãs mas nas passerelles - "Agora só anda com gente bem/E vai ao sábado à noite à boîte/Espampanante e a mascar chiclete".
Bem diferentes eram os "freaks" que povoavam a cidade no final dos anos 70. "Nesse aspecto, o Chico Fininho não é mais do que um estereótipo", considera Tê. Uma personagem que reúne num só todos os tiques de muita gente que cruzou a vida do jovem autor de canções. Como recorda o letrista, era fácil, na altura, ser-se freak no Porto. Se o freak tinha como ética principal "tentar viver minimamente bem sem fazer nada", Tê acha que a sociedade da época ainda ia permitindo essa maneira de estar muito "easy going", porque a vida "era mais barata" e não havia a violência de segregação que existirá hoje em dia. Aliás, era até frequente, quando havia um concerto rock nalgum dos pavilhões da cidade, juntarem-se uma série de "freaks" tentando "cravar" uma entrada á borla. Era quase um ritual. "Na altura eles ainda tinham uma referência: uma coisa que eu gosto, um artista que eu sigo, sacar e tentar ludibriar os seguranças. As coisas estão hoje muito mais compartimentadas e já não há essa pequena fauna à beira dos concertos. Há um verdadeiro muro económico", opina Carlos Tê. Os "freaks" de agora, a existirem, não passarão de vagabundos eternamente condenados a ficar de fora, "zombies" com quem a cidade, sempre de cabeça erguida e sem olhar para o lado, já quase nada quer.
É também por isso que o Chico Fininho perdeu hoje quase todo o sentido. É um personagem típico dos anos 70. A droga ainda não entrara em força, a heroína era uma recém-chegada, o vício mordia mas não destruía e a aventura de experimentar, adejando sobre o perigo, mantinha à distância o abismo. "O Chico Fininho não era ainda um heroinómano, embora andasse lá perto. Não era aquele toxicodependente de andar para aí aos caídos que é hoje a imagem normal", refere Tê. Hoje, os "freaks", se não morreram, tornaram-se "junkies" e perderam a esperança. "Se o Chico Fininho ainda existir hoje, vinte anos depois, deve andar por aí a arrumar carros", considera Tê.
Isto significa que o lado idealista e utópico do "freak" se perdeu completamente. Escavando no retrato sociológico, Tê tenta caracterizar as várias modalidades de "freak" que então a cidade albergava. Vivia-se, ao tempo, a ressaca das esperanças revolucionárias, os anos de chumbo, os cravos murchos. "Chegava a haver freaks mais intelectualizados, com outros interesses, e aqueloutro de transição entre a fase áurea do 25 de Abril e um certo flower-power tardio", relembra Tê. Mas o que importa frisar, na perspectiva do criador do Chico Fininho, é que havia um suporte onírico a sustentar a "trip", uma música no horizonte, um disco mítico, uma melodia emblemática, essa "pequena preciosidade" que era ouvir Lou Reed, um fiozinho, por mais ténue que fosse, que ligava o "freak" ao sonho; hoje, o que existe é apenas o pó, numa negra dependência e sem saída possível. Como narra a cantiga, era o próprio Chico Fininho que lamentava o "ácido com muita estricnina". "Havia até uma certa preocupação profiláctica, chamemos-lhe assim, ao ponto de querer saber se o ácido era bom; hoje em dia, metem qualquer coisa para a veia", compara Carlos Tê. E conclui: "Se há vinte anos os 'freaks' paravam perto dos pavilhões na altura dos concertos, agora páram perto dos CAT [Centros de Atendimento a Toxicodependentes]".
Nuno Corvacho
* O Chico Fininho Passou por Aqui
ARTIGO PUBLICADO NO SUPLEMENTO PÚBLICA DO JORNAL PÚBLICO - 6/11/2000