O Sinfonias de Aço, antes de mais nada, é um programa de rádio de música moderna portuguesa, daqueles à moda antiga que emitem no FM. Fundado a 7 de Novembro de 1992, actualmente é emitido aos sábados, na Rádio Barcelos, em 91.9Mhz, entre o meio dia e as 3 da tarde. No FM ouve-se no litoral norte. Quem não puder ouvir aí, pode ouvir aqui mesmo no site em directo ou mais tarde em podcast. O site onde estão agora é uma extensão ou plataforma de apoio ao programa. Por estar online a tempo inteiro alberga conteúdos que podem não ser possíveis de figurar em rádio. O resto explica-se mais abaixo.
Nota: os mais novos podem perguntar aos progenitores o que é um rádio e deve haver mais do que um lá para casa e mesmo no carro. Não precisa de actualizações de software, não crasha e só precisa de uma antena e electricidade. Garanto-vos que toca tudo sem precisar de plugins de mp3, wav, flac ou aiff. Um mimo. Faz lembrar um Morris Mini (perguntem aos papás o que é também), cuja mala de ferramentas é constituída por 3 peças: um martelo, um alicate e meio metro de arame. Ora, rádios e Morris Mini ainda existem, imaginem vocês. Tal como programas de rádio e é isso mesmo que o Sinfonias de Aço é em primeiro lugar.
-
O Sinfonias de Aço é um programa de Música Moderna Portuguesa essencialmente de cariz independente e sem distinção de estilos. É possível ouvir hip hop, metal, pop, electrónica, punk, jazz, hardcore, garage ou world, entre muitos outros. Por independente entende-se a postura artística dos autores, sem imposições de estilos ou calendário por parte das editoras.
-
O Sinfonias de Aço divulga exclusivamente música da autoria de músicos nacionais radicados em qualquer parte do mundo, ou músicos estrangeiros radicados em Portugal.
-
Todo o material recebido pelo programa merecerá presença nas suas playlists, com prioridade óbvia para as cópias físicas, que também terão direito a uma ficha a incluir no site. Atenção: o Sinfonias de Aço não toca streamings de qualquer forma ou plataforma. Para passar no programa, devem enviar faixas audio em qualquer formato, preferencialmente sem compressão ou baixa compressão.
-
Sempre que possível, o Sinfonias de Aço efectua entrevistas, as quais depois de emitidas, ficam disponíveis no site, sempre em formato audio. As entrevistas são sempre editadas sem cortes. Nenhuma parte do discurso dos entrevistados é omitida, a menos que os próprios o solicitem.
-
O Sinfonias de Aço não efectua entrevistas em modo texto.
-
O Sinfonias de Aço não é um site de reviews, reportagens ou notícias. Não é uma opção editorial ou um modelo de escolha, mas tal resulta apenas da indisponibilidade de tempo do seu criador. O projecto é da autoria de uma única pessoa há meio século a transformar oxigénio em dióxido de carbono.
-
Os conteúdos disponíveis no site são apenas para uso online. Não é permitido o download de faixas audio ou video.
-
Qualquer tentativa de hotlinking, sempre que detectada, será alvo de imediato bloqueio ao nível de servidor.
-
Todo o tráfego no site é internacional, efectuado a partir do datacenter de Provo, em Salt Lake City, nos Estados Unidos.
-
Para contactarem o Sinfonias de Aço devem utilizar o formulário na secção "Contactos" ou usar uma das vias alternativas. Para prevenir varrimentos de spammers, o Sinfonias de Aço não divulga nenhum dos seus emails online.
As palavras Sinfonias e Aço, só por si e isoladas, já transmitem força e impacto. Juntas soa ainda mais potente e o objectivo era mesmo esse. Além disso gostei do nome. Acho que soa bem, dito em rádio. É um nome com uma música muito própria.
Sinfonias de Aço também porque originalmente, em 1989, este programa misturava rock com música clássica. Não se assustem: era um programa de rock, com voice talk em cima de trechos de música clássica, coisas fortes e bem marcadas das sinfonias e obras mais conhecidas da chamada música clássica (que inclui também a música barroca e romântica). E acreditem que esses trechos são um belo tapete para se falar de improviso. São uma espécie de carril por onde um comboio veloz desliza. A ideia não era minha: o Alan Freeman da BBC fazia o mesmo. Pois: já em 1989 não restava mais nada para inventar em rádio. É verdade.
Alan Freeman? Sim, aqui fica um intro de um dos seus programas:
Mas, espera lá, eu não disse antes que o programa foi fundado a 7 de Novembro de 1992 e agora venho com o ano de 1989? Vamos lá tratar de esclarecer tudo. O Sinfonias de Aço original data de 1989 e era o tal programa de rock que ia até ao metal e usava trechos de música clássica. Tinha duas versões: uma mais pesada (do punk ao metal) nas noites de terça e outra mais abrangente (que ia do rock alternativo ou indie até ao psicadélico) nas noites de sábado para domingo. Mas só durou 4 meses e depois acabou porque eu saí da rádio. Estava na Rádio Cávado, em Barcelos.
Sensivelmente dois anos mais tarde voltei à rádio para trabalhar na área de desporto e comecei a sentir saudades de fazer um programa de música. Mas decidi que não queria fazer mais nenhum programa igual a tantos que se faziam por aí. Que interesse tinha mais um a passar os Pink Floyd, Cocteau Twins, Sex Pistols, AC/DC, The Cure, ou Led Zeppelin? Não, eu queria passar coisas que as pessoas nem imaginavam que existia. Eu queria virar Barcelos do avesso. Desconfiava que não iria conseguir, mas estava enganado.
O programa foi proposto à direcção. Uma coisa arrojada: só bandas portuguesas, só trabalhos não editados e tudo em cassete demo. Qualquer pessoa sensata me acharia louco, mas pior ainda quando pedi duas horas semanais. Ninguém acreditava que eu tivesse ou conseguisse arranjar material para isso, mesmo repetindo imensas coisas frequentemente. Isso é o que iríamos ver.
Para não meter a cabeça num cepo, tratei de estabelecer uns contactos para começar a colectar material e juntar ao que já tinha que me tinha sido cedido por alguns colaboradores de outras rádios, entre elas a Rádio Comercial, ainda empresa pública de comunicação, bem antes da privatização. Outros contactos foram directos aos artistas e muito material chegou antes da primeira edição a 7 de Novembro de 1992.
Excerto da colecção de demos em cassete do Sinfonias de Aço
Eram duas horas semanais, aos sábados entre as 19 e as 21 horas. Nos primeiros meses, exclusivamente com som em cassete demo, nenhuma delas editada. Afinal, o programa trazia para a superfície uma fatia do underground e os colegas da rádio ficavam a saber que existe mais mundo para lá do que a vista alcança e atrás do cinescópio de um televisor - na altura não havia monitores planos nem nos filmes de ficção científica.
Só que nessa altura o hóquei em patins dava cartas em Barcelos, a rádio acompanhava as equipas locais (que eram duas), os horários coincidiam e, para ajudar à festa, o coordenador das reportagens era eu mesmo. Ou seja, à hora a que devia estar a fazer o Sinfonias de Aço, estava a relatar uns artistas a dar bengaladas na bola de vez em quando e nos adversários quase sempre. Então acordou-se que o programa passaria para o espaço entre as 13 e as 15, mesmo na altura em que as donas de casa estão a servir as migas. De vez em quando era o futebol que abalroava as coisas com uma transmissão, mas era coisa rara. O programa começava, semana a semana, a afirmar-se. Nem eu me dei conta que nesse preciso momento a famosa cena musical barcelense começava a dar os primeiros passos. De repente, como quando acordamos numa estação ou num aeroporto, todo o cenário mudou à nossa volta. Barcelos tinha cada vez mais bandas e mais consistentes e a primeira coisa a fazer era gravar uma tema para passar no Sinfonias de Aço. Era uma boa táctica: quem quisesse mostrar, era por aí mesmo que fazia, sem ter de gravar cassetes para toda a gente. Na segunda-feira seguinte, na escola, discutia-se o que tinha passado no sábado. E isso incentivava mais gente a evoluir e a gravar. Quase sem me aperceber, as bandas começam a aparecer-me nos estúdios, a entrar pela rádio dentro, a estar literalmente dentro do programa. E não só gente de Barcelos, mas a rapaziada de Barroselas, bandas do Porto, Viana do Castelo, Braga e outras localidades onde se ouvia a rádio.
Os estúdios da Rádio Cávado, então entre uma Escola Secundária e uma zona de bares, passam a ser ponto de encontros combinados aos sábados à tarde. Às vezes eram mais de vinte pessoas na rádio, na sala mesmo ao lado do estúdio, a discutir música, a combinar ensaios e concertos, ou a formar bandas. Ao mesmo tempo ouviam o programa em directo. Alguns, mais impacientes, entravem pelo estúdio dentro para saber quem estava a passar e de onde eram. Não queriam sequer esperar dois minutos para eu anunciar na rádio. Dei-me conta da força do programa e da sua ligação intrínseca à cena barcelense. Sem internet e sem contactos privilegiados para conhecer à distância o que se fazia no resto do país, as bandas barcelenses levavam uma vantagem: comigo sabiam o que os outros andavam a fazer porque ouviam no programa. Através deste fenómeno, houve parcerias entre bandas de Barcelos e de outras localidades, houve contactos com editoras, concertos que foram possíveis e vias de divulgação abertas. Internet? Quase ninguém tinha e mesmo o que havia, bem podem esquecer os conteúdos multimédia. Os modems em cima de linhas telefónicas tinham 16 ou 28.8K e isso era o mesmo que dar um salto a Paris por uma estrada romana na Idade Média. Foi um período interessante, mas acabou ao fim de alguns anos.
A direcção da rádio mudou e as novas pessoas não entenderam esta realidade. Não perceberam que o Sinfonias de Aço e a realidade musical barcelense era maior do que elas e começaram a impedir os músicos de entrar nas instalações. E à proposta de me oferecerem mais horas de airplay, contrabalançaram com violação de correspondência e uma perseguição de fininho que, de todo não percebi até aos dias de hoje. Nem quis perceber: abandonei a rádio antes de me chatear ainda mais.
Logo de seguida surgiu a oportunidade de transferir o programa para a outra rádio de Barcelos, precisamente a Rádio Barcelos. E calhava bem, porque o mesmo horário estava prestes a ficar livre. Mais ou menos: blocos informativos que pareciam o "Expresso" em formato audio e mais publicidade que a secção de massagens do JN deixavam-me livres pouco mais de 50 minutos de 120 iniciais. Não aceitei e propus 3 horas na noite de sexta para sábado, sem publicidade, notícias ou sinais horários. Proposta aceite e um desafio: podia fazer até as 7 da manhã (por acaso nunca estiquei tanto). O Sinfonias de Aço entrava numa nova era, agora com imenso tempo de airplay, mas com um auditório diferente. A malta dos copos e da noite ouvia em trânsito e os ouvintes mais fieis eram os que trabalhavam. E eram alguns, que ligavam para a rádio e mandavam mensagens. Andei uns anos assim, mas a rádio nunca foi a minha actividade principal e, verdade seja dita, ao fim de uma semana de trabalho, o cansaço começava a apoderar-se da carcaça cada vez mais velha. Já havia proposto trazer o programa para a tarde, mas a direcção recusou de imediato. Só que o Sinfonias de Aço é teimoso e paciente e com a mudança de mãos da Rádio Barcelos e a nova direcção, a proposta partiu deles: trazer o programa para a tarde, com as mesmas 3 horas de emissão. Obviamente que não são 3 horas úteis, porque há publicidade, notícias e sinais horários, mas a raposa velha sabe que tem de atacar noutra frente. A internet mudou tudo, quem souber e quiser, sabe o que procurar sem esperar por um programa de rádio, mas eu conheço os segredos todos da rádio e sei que a rádio atinge um público aleatório. É esse público que eu quero trazer de volta: a dona de casa que está na lide doméstica, o picheleiro que vai fazer um biscate, o barbeiro que ainda nem se lembrou de mudar de rádio, o tipo que está a lavar o carro ou o padeiro que no dia anterior deixou o rádio em 91.9Mhz para ouvir o relato do futebol. São esses que porventura ainda não conhecem muito do que eu passo em rádio e são esses e todos os outros mais informados que eu quero alcançar. Todos, sem excepção, de todas as idades e de todos os gostos musicais. Podem desligar ou ficar quando quiserem. Nunca me preocupei com valores absolutos de auditório. E, pelos vistos, os artistas também não. Continuo a receber mais material do que aquele que consigo divulgar. Com jeitinho vai cabendo toda a gente e com jeitinho o Sinfonias de Aço leva 22 anos no activo. Não é simples nem difícil. É assim mesmo.
Sabem uma coisa? Há 3 carros que marcaram a minha infância. E eram todos comerciais, ou carrinhas ou, como se dizia na altura, furgonetas. Nós tínhamos um pequeno negócio e as carrinhas eram essencialmente de trabalho. A saber: uma Fordson E83W, uma Peugeot D3A e uma Citroen 2CV. Obviamente não tenho fotos delas, mas reproduzo o retrato de outras iguais.
Citroën 2CV Van, Peuget D3A e Fordson E83W - quando os carros não eram maricas
Comum nestas 3 viaturas era o facto de não terem mariquices nem modernices, como ar condicionado, direcção assistida, vidros eléctricos, GPS, cruise control e... rádio. Nem os carros dos ricos tinham isso, com excepção do rádio. Aí sim, lembro-me de ver uns Mercedes que tinham rádio e que a mim me pareciam viaturas medonhas, porque tinham a frente igualzinha às ambulâncias. Mas, na infância de finais dos anos 60 fazia-me muita confusão um carro andar por aí com um rádio a tocar sem um fio ligado à parede. Como fazia confusão ver alguém na rua a ouvir um relato do Artur Agostinho. Já achava normal ele tocar se tivesse um fio ligado à parede. Pronto, não fazia a mínima ideia do que eram as ondas de rádio, mas não fico triste, porque nos dias de hoje há ainda muita gente que também não sabe e eu nessa altura tinha uns 6 ou 7 anos.
Ora, um rádio com um fio ligado na parede, já fazia todo o sentido e tinha a sua lógica para mim. E lembro-me como se fosse hoje quando veio um aparelho de rádio lá para casa. Era um Grundig de 4 bandas (onda longa, onda média e duas de onda curta). O rádio só tinha 3 botões mas, mesmo assim, o homem da loja veio explicar muito bem como funcionava. No primeiro botão liga-se, desliga-se e põe-se mais alto ou mais baixo – percebi logo à primeira; no segundo botão escolhem-se as emissoras (Emissora Nacional, Rádio Renascença, Rádio Clube Português) – não percebi tão bem, mas deu para ficar a saber que havia várias opções e podia-se escolher o que se queria ouvir. E era tudo, pronto. Mas um puto novo e reguila tinha visto o terceiro botão e toca a perguntar. Resposta: “nesse não se mexe”. Achei estranhíssimo que uma fábrica de rádios fizesse um aparelho com 3 botões, sendo que um deles não era para usar e, pior do que isso, havia mesmo ordens para não mexer naquele. Uma coisa sinistra, acho que vocês concordam. Durante muito tempo nem liguei àquilo, mas à medida que fui crescendo, a curiosidade apoderou-se de mim. Não havia notícias de alguém ter morrido ou ficado entrevado por mexer no 3º botão do rádio, nem era suposto a fábrica alemã ter um botão cuja funcionalidade seria estragar o rádio. Mas as ordens eram mesmo para não mexer, não era a mesma coisa que “este é o botão misterioso que a Grundig pôs no rádio, mas que não serve para nada”. Ainda por cima,se a ordem era para não mexer, é porque ele servia para algo. Um dia, num arremedo de loucura, enchi-me de coragem e toca a investigar o botão. Tinha 4 posições: LW, MW, SWI e SWII. Ora, era a mesma coisa que estava escrito nas escalas em cima por onde se mexia um traço vermelho quando se escolhiam estações. E mais: tinha lá um ror de números escritos e até o nome de algumas cidades, como Paris, Munique ou Luxemburgo. Eu já na altura sabia que isso era no estrangeiro, que era de onde vinham as pessoas loiras e com roupas coloridas no verão. Então por isso a ordem de não mexer: aquele botão era para ouvir rádio quando se estivesse no estrangeiro. Eu estava quase a descobrir o bosão de Higgs, quando me surgiu um problema de dificil resolução: como raio é que o rádio sabia se eu estava em Portugal ou no estrangeiro? Não, a verdade não estava toda contada sobre o botão e eu era menino para não descansar enquanto não descobrisse. Vai daí, um dia apanhei o rádio a jeito e enchi-me de coragem. Se estragasse alguma coisa, não me cortava e ninguém iria desconfiar que um menino tão bem mandado tinha mexido no botão de ouvir no estrangeiro que avariava se não estivesse no estrangeiro. Então, toca a respirar fundo e verificar onde eu podia mexer. O botão estava em MW, à esquerda tinha LW e à direita SWI e SWII. Comecei por rodar para a esquerda e... nada. Silêncio absoluto. Se tivesse feito merda, voltava a pôr em MW, saía de fininho e ninguém saberia. Mas depois lembrei-me de mexer no botão do meio (o que fazia a sintonia). Pouco mais adiantei. Silêncio e mais silêncio, até apanhar uns ruídos de fundo, uma música muito baixinha e um tipo qualquer a falar estrangeiro. Se era aquilo que os estrangeiros faziam,então pobres desgraçados, bem eles faziam em vir até cá no verão para ver um bocado de vida. Voltei a pôr em MW, depois rodei para SWI e ouvi logo mais qualquer coisa, mas muito confuso. Rodei a sintonia e, voilá!, começam a aparecer vozes aos pontapés e músicas esquisitas sem nunca mais acabar. Tudo estrangeiro e rapidamente refiz a imagem que tinha deles. Eram às pazadas de coisas diferentes. Depois rodei para SWII e ainda tinha mais coisas. Era de um homem se perder com tamanha escolha de vozes a falar estrangeiro e músicas que eu nem imaginava que existiam. Fiquei logo fascinado com aquilo, voltei a pôr como estava em MW e prometi a mim mesmo que esta descoberta ficava em segredo e iria explorar isto quando tivesse mais oportunidades de descobrir aquela pequena maravilha que estava ali à minha mercê e cuja dádiva me havia sido sonegada.
Mostrador de um rádio clássico com 11 bandas: 1 Onda Longa, 1 Onda Média, 8 Onda Curta e 1 FM
Inicialmente pensei que a SW era uma espécie de cana telescópica que ia buscar as coisas mais longínquas e a MW era para o que estava mais perto. Estava errado, claro. A minha dedução de que as SW (shortwave, ou ondas curtas) eram as rádios nacionais no estrangeiro estava errada. Rapidamente descobri que, salvo raras excepções como à noite em MW e LW (medium wave e long wave, ou onda média e onda longa), as emissões que eu ouvia não eram locais ou nacionais, mas internacionais. Ou seja, o que eu ouvia em SW era emitido de lá longe para mim. Aquilo eram emissões internacionais, na maioria dos casos para fora do país e com duas finalidades: nas línguas nacionais para os cidadãos desse país no estrangeiro, ou nas línguas de destino para cidadãos estrangeiros. Explico: a RDP, por exemplo, emitia com dois serviços, a RDP internacional para os nossos emigrantes e a Rádio Portugal, em línguas estrangeiras para os cidadãos dos diversos países dessas línguas. A finalidade era promover a nossa cultura, o nosso turismo, a nossa música e informar sobre o que cá se passava. E os outros faziam o mesmo, por isso eu ouvia imensos serviços em português a partir de imensos países. E ouvia também serviços em espanhol para toda a América Latina. O auditório era baixo, como se supõe, mas o que existia era fiel e interessado. A mim fascinava-me ouvir as notícias em espanhol das rádios europeias e saber que na noite europeia e à mesma hora, alguém na Venezuela ou no Equador ouvia o mesmo que eu, mas de dia.
Mapa de cobertura da RDP Internacional
Eu ouvi imensas coisas que fui descobrindo para me pôr em contacto com o mudo. O desporto nunca me falhava. Através da Rádio France International soube da vitória do Joaquim Agostinho no Alpes d'Huez; Pela Rádio Internacional da Amazónia acompanhei todo o Mundialito do Uruguai, em Montevideo, em 1980, através do relato do José Carlos Araújo, num relay da Rádio Globo; pela Rádio Internacional do Chile ouvi a vitória de Portugal sobre a campeã Argentina por 8-2 no mundial de hóquei em patins de 1980, em Santiago. Uma hora depois a RDP ainda não sabia do resultado e eu refastelado em casa. E tanta, tanta coisa que eu sabia sempre em directo. Presenças em troféus das equipas portuguesas, em Milão, no Teresa Herrera, em Paris, etc.; grandes prémios de Fórmula 1 e... a Premier League que eu acompanhei tantas vezes, entre muitas outras coisas.
Um aparelho vintage de 4 bandas
Só que estávamos em plena guerra fria e a onda curta era massivamente usada como propaganda de ambos os lados: do Leste, inúmeras rádios com propaganda comunista, com a Rádio Moscovo à cabeça com os seus 1 milhão de watts, que a tornavam a rádio mais potente do mundo. No tempo do Estado Novo fora uma boa fonte de informação anti-fascista. Do lado de cá, propaganda capitalista através das rádios nacionais, com a Rádio Europa Livre à cabeça, mas também a BBC Internacional, Voz da Alemanha ou Voz da América, entre muitas outras. Foram tempos incríveis.
Faixa | Frequência | Usado em: |
---|---|---|
160 m | 1800 - 2000 kHz | utilizada por radioamadores |
120 m 90 m |
2300 - 2495 kHz | onda tropical |
90 m | 3500 a 3800 kHz | utilizada por radioamadores |
80 m | 3200 - 3400 kHz | onda tropical |
75 m | 3900 - 4000 kHz | utilizada por radioamadores |
60 m | 4750 - 5060 kHz | onda tropical |
49 m | 5900 - 6200 kHz | muito utilizada nas Américas |
40 m | 7000 - 7300 kHz | utilizada por radioamadores |
31 m | 9400 - 9900 kHz | uma das mais usadas no mundo |
25 m | 11600 - 12100 kHz | muito utilizada nas Américas |
22 m | 13570 - 13870 kHz | bastante usada na Ásia e na Europa |
20 m | 14000 - 14300 kHz | utilizada por radioamadores |
19 m | 15100 - 15800 kHz | |
16 m | 17480 - 17900 kHz | |
15 m | 18900 - 19020 kHz | utilizada em transmissão DRM |
15 m 13 m |
21450 - 21850 kHz 21000 a 21300 kHz |
utilizada por radioamadores |
11 m | 25600 - 26100 kHz | utilizada em transmissão DRM local |
11 m | 26960 - 27860 kHz | utilizada para a Banda do Cidadão |
10 m | 28000 - 29700 kHz | utilizada por radioamadores |
Mapa de comprimentos de onda e utilizações mais comuns
E foi também nesta altura que percebi a terminologia utilizada para diferenciar a onda longa, onda média e onda curta. Tinha mesmo a ver com o comprimento de onda da radiação, inversamente proporcional à frequência. Frequências muito altas, comprimentos de onda baixíssimos; frequências mais baixas, comprimento de onda alto, até às centenas de metros. E eram mesmo assim, em metros reais que a radiação se media, isto no espectro das ondas de rádio. Mas havia ainda o FM, as ondas de televisão em UHF e VHF e outras mais. Percebi depois que cada gama de frequências tinha uma finalidade e características técnicas. Umas eram usadas em determinados pontos do globo, outras era de sinal fraco mas boa propagação, outras de sinal bom, mas com pouco alcance e cada uma tinha a sua especificidade. Determinadas frequências era para uso exclusivo militar, outras pelas polícias, outras pelos bombeiros, outras pela marinha comercial, outras pelos radioamadores, etc. Tudo devidamente regulamentado. E eu, adolescente, espalhara fios pelo telhado e ouvia literalmente tudo em casa. Guardo ainda algumas gravações preciosas.
E fui ainda mais longe: escrevi às rádios, tornei-me correspondente técnico e enviava relatórios técnicos de recepção. Na volta do correio, recebia cartões QSL, galhardetes, lembranças dos países, publicações, etc. Um puto correspondente da Rádio Praga, Radio South Africa, Deutsche Welle, BRT, Radio Nederland e, entre muitas outras, ...Voz da América e Rádio Moscovo. Em grande.
E um segredo que me fascinava: o jazz de New Orleans que eu ouvia, assim como a bossa nova do Rio ou a música árabe de Bagdad, eram emitidos para a ionosfera e reflectidos para a Terra. No caso das transmissões intercontinentais do continente americano para o europeu era emissor → ionosfera → Oceano Atlântico → ionosfera → Europa. Ou seja, as ondas de rádio faziam um “M” através de meio mundo para chegar ao meu rádio. Maravilha.
Nas aulas de Física, descobri que, afinal, as ondas de rádio não são mais que um nicho dentro das radiações, onde também estão as microondas, os raios X, raios gama e a luz visível e invisível, do infravermelho ao ultravioleta. Se a frequência da onda média é diferente da onda curta, também a frequência do azul é diferente do vermelho e por isso nós vemos cores diferentes. Na verdade, o que existe são comprimentos de onda e frequências diferentes, mas não há cores nenhumas na Natureza. O nosso cérebro é que as inventa. Desculpem se vos desiludi.
Explorada a imensa música das mais diversas latitudes, percebi depois que a onda média e a onda longa que eu ouvia bem à noite, essa sim, era proveniente de emissões nacionais. Foi aí que descobri a mais fascinante e romântica rádio que alguma vez existiu e que emitia de um barco de nome Ross Revenge, no Canal da Mancha, em águas internacionais - a rádio mais amada por qualquer entusiasta: Radio Caroline. Aqui fica uma colecção de jingles para fazer roer de inveja os nados depois da década de 80 (convém dizer que esta rádio foi fechada e o barco apreendido pela marinha inglesa ilegalmente em águas internacionais, ao serviço de sua maiestade, a pátria da - como se diz? - democracia, acho que é isso).
Mas também ouvi a BBC, com o John Peel, o Alan Freeman ou o Tommy Vance. Velhos senhores que me meteram a febre da rádio infectada com o vírus da música. E também os havia em Portugal. Sem merdas, Aníbal Cabrita, Júlio Isidro, Luís Filipe Barros e António Sérgio, entre muitos outros, são influências minhas, como é evidente.
Posto isto, não faltou muito até haver vontade em experimentar se, afinal de contas, eu tinha o mínimo de jeito para realizar rádio ou se era um simples azeiteiro e devia desistir. A melhor forma de aprender: ouvir os profissionais e, sem os imitar, procurar fazer como eles e aprender – acho que muita gente não faz isso hoje em dia. Com o eclodir das rádios livres e programas de autor em meados da década de 80, surgiram os locutores e realizadores como bichos de conta. Mas eu não. Demorou um bocado até eu lá chegar, mas antes disso já tinha treinado imenso em casa a gravar simulações de locução para cassetes. Não fosse a teimosia e tinha desistido da primeira vez que me ouvi – bolas, eu era grotesco. Mas tive a capacidade de me ir corrigindo, de perder o tesão de microfone, de aumentar o poder de síntese... mas sem ter uma grande vontade de fazer rádio a sério, apesar de em Barcelos elas já emitirem.
Uma dessas rádios tinha na altura um programa dedicado aos sons mais pesados e como eu sempre ouvi de tudo, tinha alguns discos que a generalidade das pessoas nem sabia que existiam (vantagens de se ouvir o “Som da Frente” e o “Lança Chamas” do António Sérgio ou o “Friday Rock Show” do Tommy Vance). Então, eu e um amigo propusemos emprestar uns disquitos ao homem para que ele não passasse a vida a pôr sempre a tocar a mesma coisa. Só que o homem estava de saída da rádio e as coisas pareciam acabar ali, até que alguém da rádio propôs que ficássemos nós com o programa. Ora, a cigarra tinha treinado em casa e quando fiz a primeira prova, fiquei logo à experiência, mas no ar, assim atirado às feras. Saí ileso e o meu assistente optou por não fazer locução. O programa manteve-se, mas agora com outra realização e umas sacadas valentes de discos diferentes. Pouco tempo depois, uma zanga parva fez com que eu me separasse do meu colega e fiquei sozinho com o programa. Mas, como eu não queria só passar hard & heavy, comecei com outro programa, mais alternativo. Chamava-se “Multirock” e surgiu na mesma altura em que as caixas multibanco apareciam como Ferraris no Vale do Ave. E depois outro, à sexta à noite, o “Laranja Mecânica”, que me fez perceber que a generalidade das pessoas não sabia quem era o Anthony Burgess ou o Stanley Kubrik. Alguns associaram ao PSD e à selecção holandesa de futebol. A propósito disso, eu também já fazia desporto nesta rádio como um burro de moleiro carrega farinha. Fomos os primeiros a fazer relatos de hóquei em patins, na altura em que os clubes barcelenses começavam a dar nas vistas. Depois seguiu-se o futebol. Não éramos bons a fazer rádio nem a rádio era boa, mas era feita com entrega total. A rádio tinha um nome horrível, chamava-se Rádio Atlântida.
Depois, saí. Estava a ficar cansado, queria mais tempo para mim. O Cavaco mais tarde fechou as rádios todas, depois criou-se a lei da rádio e abriram outras legais em 1989. Em Barcelos ficaram duas e eu fiquei na Rádio Cávado, onde fiz desporto e... o Sinfonias de Aço. Ou antes, o proto-Sinfonias de Aço. Acho que já vos contei essa história. Quando for mais velhinho, vocês trazem uma garrafa de uísque velho, sentam-se à lareira e eu conto algumas histórias engraçadas. Combinados?
Para já, uma conclusão óbvia fruto de uma experiência de 27 anos no ar: o Sinfonias de Aço é uma brutal máquina de fazer amigos.
(Manuel Melo, Fevereiro de 2020, D.C.)