O ROCK ALTERNATIVO PORTUGUÊS DOS ANOS 80
Quem começou a ouvir música com a cabeça, em meados dos anos 80, teve a sorte de presenciar um momento de enorme ebulição criativa da música moderna nacional. Mas a esse privilégio sucedeu-se uma angústia duradoura e que se tem traduzido pela ansiedade da perda de força desse momento e o eterno adiamento de uma recuperação. Não é este o espaço para discutir o porquê dessa falta de vitalidade (a massificação das rádios, o desaparecimento de salas, podem ser justificações válidas). Tem havido ameaços, aqui e ali, mas que ainda não foram suficientes para recuperar a energia criativa testemunhada pela segunda metade da década de oitenta. Este texto gostaria de ser uma espécie de introdução a esse período de efervescência
Apenas proponho um pequeno stroll down memory lane que, para alguns, poderá ser o primeiro contacto com aqueles nomes. Não vou falar do "primeiro boom do rock português" - isso ficará para os arqueólogos. O que proponho é um recuo até um período cronológico que tem início por volta de 1984/85...
Portugal ascendia à sua actual categoria de nação europeia e a sua juventude espraiava-se num longo espectro que ia da rebeldia tardo-punk à problematização do ser português. Aproveitando um quadro legal omisso, o espaço aéreo nacional era povoado por centenas de rádios piratas a transmitirem regularmente e responsáveis, muitas delas, pela divulgação de novas propostas internacionais e nacionais. Na área lisboeta, o projecto recordado com mais saudade chamava-se RUT (Rádio Universidade Tejo), responsável pela formação musical de uma geração privilegiada.
Na imprensa apareciam novos espaços com o Blitz. Ainda com a atenção centrada na capital, uma sala de espectáculos assumia-se como epicentro da movimentação que se adivinhava: o Rock Rendez-Vous (RRV), ali para os lados de Santos. O Porto, com locais como o Indústria, Aniki-Bóbó e Luís Armastrondo, funciona como cena alternativa à capital; e Braga, numa postura marcadamente contra-corrente, é uma produtiva fonte de propostas.
Os concursos anuais promovidos pelo RRV congregam a actividade de bandas espalhadas pelo país que vêem na possibilidade de gravação de trabalhos seus um incentivo importante, capaz até de compensar os assobios e as bocas de uma plateia… empenhada.
Entre as editoras, surge alguma actividade nas chamadas 'independentes'. Destacam-se alguns nomes que vão, também eles, incorporar e dar vazão ao "movimento": a Fundação Atlântica (responsável pelos primeiros trabalhos da Sétima Legião), a Ama Romanta de João Peste e dos Pop dell’Arte ou a Dansa do Som, ligada ao próprio RRV e cuja loja na Ressano Garcia era um local de passagem obrigatória. Era a época em que a Motor (actual Bimotor), a Contraverso e a One-Off (nas Amoreiras) se encarregavam de importar a música alternativa (então chamada de «som da frente» ou «vanguarda») sobretudo em vinil e, depois, num formato novo a que muitos torciam o nariz, chamado compact disc.
Cedo as editoras maiores, como a EMI-VC, a PolyGram ou a CBS despertaram para o que se estava a passar e acabaram, elas próprias, por alinhar na tendência. A MMP vendia bem, sobretudo graças a alguns nomes estandarte que abriam portas: Xutos & Pontapés, Rádio Macau, Heróis do Mar. Mas esta era apenas a linha da frente, com elementos treinados de outras eras. Por trás, a fervilhar, havia um mar de propostas imenso, tantas que é difícil não nos perdermos. Muitos deles conseguiram furar as barreiras e chegar a gravar. As suas sortes foram diversas: uns entraram directamente para o estrelato, outros gozaram a fama efémera, outros viram-se reduzidos a cultos localizados. Muitos nunca gravaram discos e apenas persistem nas nossas memórias pelos concertos que deram ou pelas maquetes que as rádios passaram. Uns ainda existem, doutros perdeu-se o rasto, outros, finalmente, criaram novos projectos. Olhando agora para trás, o que vem à memória é uma época de enorme diversidade e vontade de criar e experimentar. Proponho um breve e subjectivo guia. A escolha das bandas é obviamente pessoal e baseia-se em nomes que ainda hoje sabe bem reouvir ou saber que existiram. Nomes que influenciaram o modo de fazer as coisas, nomes que encheram o coração da crítica ou de algum público. A opção por colocar a tónica numa certa cultura underground serve para acentuar os paralelismos com aquilo a que assistimos hoje - não vou falar do que vendia, do que chegava aos tops, mas do que se produzia e conseguia chegar, de uma forma ou de outra, a um público remoto. Verão que não era pouco.
1. A portugalidade.
Neste primeiro grupo, coloco as bandas que se debruçaram sobre a forma portuguesa de fazer música moderna. Era o período pós-Heróis do Mar e o começo do reinado de Miguel Esteves Cardoso junto de uma certa intelectualidade juvenil portuguesa. O toque de ambos fez-se sentir sobre algumas destas bandas; as outras poderão funcionar como contraponto (até ideológico) da «portugalização» da MMP. Nos primeiros colocaria Madredeus, inicialmente concebidos como grupo sem nome para um disco gravado na igreja da Madredeus que, por isso, se intitulou Os Dias da Madredeus - a expectativa criada foi enorme e o sucesso, sobretudo com o segundo disco, levou-os até onde todos sabemos; e Sétima Legião, cruzando, sobretudo no primeiro àlbum, influências da corrente depressiva da Manchester do início dos anos 80 com a tradição portuguesa (recriada). Noutra vertente, havia a recuperação quase folk-rock da tradição com grupos como Essa Entente (participantes de um CMM do RRV) ou Seres (inéditos).
2. Pop experimental.
Uma das áreas mais rica e surpreendente. A procura de criar música de uma forma nova, marcadamente europeia, senão mediterrânica, explorando universos tão distintos como o das músicas do mundo, ambientes de cabaret e cinematográficos, uma certa portugalidade pós-moderna, ambientes de quase-esquizofrenia, propostas dançantes directamente direccionadas ao cérebro, exploração e manipulação de sons em estúdio… Nomes: Mler Ife Dada de Anabela Duarte e Nuno Rebelo; Pop dell’Arte de João Peste; Ocaso Épico de Farinha Master; K4 Quadrado Azul (inéditos); Melleril de Nembutal (inéditos), Repórter Estrábico, a banda do vocalista articulado (António Olaio, igualmente pintor).
3. Uma pop mais mainstream.
A par das propostas menos convencionais, a música pop portuguesa vivia também de produções capazes de atingir públicos mais vastos e de competir por lugares nos tops de vendas. Uns GNR que entram na segunda metade da década com uma pujança renovada pela tomada dos comandos por parte de Rui Reininho; uns Delfins a tactearem o caminho e a saírem da Linha; uns Ban recuperados da depressão mancuniana de Alma Dorida e aptos a entrar num universo colorido de bolhinhas que fazem pop!; uns Radar Kadafi saídos dos concursos do RRV e a mostrarem-se capazes de produzir sons de Verão que ficaram na memória; finalmente uns Requiem Pelos Vivos, outros concursantes, com uma pop melodiosa e florida, uma espécie de «Os Smiths Vão Ao Campo».
4. Politicamente empenhados
Num Portugal governado sob a égide do Prof. Aníbal Cavaco Silva, a expressão política na MMP faz-se pela oposição. Três projectos particularmente interessantes, destacam-se: os Linha Geral, talvez uma das mais inteligentes propostas, alinhando por uma esquerda poética e quase épica; os Clandestinos, responsáveis por temas que iam do mais tresloucado escárnio a toadas quase Eisensteinianas; os Sitiados, com a abordagem afadistada e boémia que marcou a sua música até ao primeiro álbum.
5. Punk.
Um universo próximo do anterior era o das bandas punk, que teimava em fazer sobreviver um movimento velho de 10 anos. A mais bem sucedida junto do grande público dava pelo nome de Peste & Sida, com uma carreira à la The Clash, explorando diferentes estilos, sem grandes concessões. Outros nomes que saíram das garagens: Mata-Ratos (O Armando é um comando e A minha sogra é um boi, são os nomes dos seus clássicos), Censurados, Crise Total, Bastardos do Cardeal.
6. Rockabilly
Inesperadamente naquela segunda metade da década, surge em Portugal uma onda rockabilly encabeçada pelos geniais Emílio & A Tribo do Rum (futuros Capitão Fantasma). Era o rock de popa e contrabaixo, de carros e raparigas, de jeans e cabedais, que encontrou ecos noutras bandas como os Tequila Mal ou Tédio Boys.
7. Rock Alternativo
Uma longa lista de nomes integra este grupo, talvez por ser o mais geral. Erro do escriba? Não duvido. Aqui incluo todos aqueles cuja produção seguia, de perto ou de longe, os trâmites ditados pela cena independente anglo-saxónica. Assim, falo de gente muito diferente, tão diversa quanto as ofertas da época. Rock de guitarras, urbano, com ligações a Inglaterra via Lloyd Cole (Bateau Lavoir) ou a cena indie britânica (Entes Queridos, Rongwrong); rock com distorção, segundo o paradigma Sonic Youth, mais ou menos melodioso (Flávio com F de Folha, Santa Maria Gasolina em Teu Ventre, Tina & The Top Ten); rock intelectual, de palavras e extensos épicos (Croix Sainte); rock alternativo, recreando atmosferas sombrias e ritmicamente espessas (Mão Morta).
8. Desbundantes
E para terminar, as bandas de tipo circense, desconstrutivas pelo humor assumido. Nomes que adoptam a explosão de géneros como forma de dar vazão a tudo o que têm para arrasar, com humor mais ou menos ácido, mais ou menos brejeiro. É fácil destacar um nome: Ena Pá 2000, que, depois de lançarem o maxi Telephone Call / Pão Amor e Totobola, muitas salas tiveram que percorrer até conseguirem gravar um álbum, deixando um legado imenso de entrevistas geniais. Num registo próximo, sobretudo pela postura em palco, não posso deixar de referir os conimbricenses M’As Foice (leia-se é mas foice) famosos por deixarem atrás de si rastos de legumes (alfaces, sobretudo) em cada palco que pisavam; finalmente, noutro registo, os Afonsinhos do Condado (de Gimba, futuro irmão Catita) e a sua incorporação de ritmos latino americanos e tropicais.
pohzumano (Nuno Camarinhas)
Artigo publicado na edição de 30 de Janeiro de 1999 do site 'Rádio Pirata'.
Em 2003 foi republicado (com novo texto introdutório) no site 'A Puta Da Subjectividade'