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Com o 25 de Abril, estoiraram nas rádios, infinitas vezes, todas as músicas que ao longo de décadas de ditadura haviam sido proibidas, retiradas do grande público, apenas ouvidas em tertúlias secretas e na clandestinidade. Os cantores de intervenção passaram das secretas actividades à exposição total, e passeavam-se então pelo país, expunham a sua música, na maioria das vezes em termos gratuitos. As canções, e o género de intervenção, estavam mais fortes do que nunca e com uma divulgação sem precedentes. Por toda a parte, só essas canções eram ouvidas, numa sede de combater a falta que haviam feito ao país, e ao seu povo, durante tanto tempo. Como representação social de uma realidade que agora estava vencida, e como tal devia ser celebrada. As emissões radiofónicas por elas eram dominadas, assim como as notícias; os sonhos de futuro eram representados por aquelas palavras outrora proibidas. Muito pouco se fazia além das canções de intervenção, das baladas de revolta, e o pouco que se fazia não encontrava possibilidade de divulgação, nem espaço de audição.

Com alguma insistência iam surgindo, no entanto, alguns projectos, mas o rock era quase inexistente... até que se começou a ouvir falar dos Tantra, uma banda que ia beber as suas principais influências a bandas como os Genesis, a um rock sinfónico e encenado, e que conseguiu, apesar de tudo, encher o Coliseu, numa altura em que tudo faltava -- até o público, pouco habituado a ritmos eléctricos e a este tipo de propostas. Mas, como Zé Pedro, guitarrista dos Xutos e Pontapés, recorda, havia outras bandas precedentes, que foram abrindo alas ao que se iria passar de seguida. «Comecei a ver concertos quando os circuitos que havia eram dos convívios de liceu, em que havia uma série de bandas a tocar covers, e que começavam a apresentar alguns originais.

Nessa fase, e falamos do início dos anos 70, as maiores referências eram os Objectivo, uma banda que reunia uma série de gente conhecida, desde o Guilherme Inês ao Zé Nabo; havia os Chinchilas, a banda do Filipe Mendes... O concerto dos Genesis, em Cascais, em 74, foi um marco bastante importante para o pessoal. Apareceram, ou estavam já envolvidas, uma série de bandas que estavam a beber dessa onda musical do rock progressivo, com os Beatnicks, com a Lena d'Água e o Tó Leal a cantar; também os Ananga-Ranga tinham uma certa importância. Até que surgiram os Tantra, a primeira banda a aparecer com uma verdadeira postura de banda. Eles tinham um PA próprio... tinham um espectáculo cénico grande, dentro da dimensão do meio musical da altura. Eles usavam máscaras, faziam um jogo teatral muito curioso. Os álbuns deles eram conceptuais, do início ao fim, o que naquela altura era moda. Os Tantra cantavam em português e têm um álbum que se chama «Mistério e Maravilhas». Também havia os Perspectiva, uma banda da margem sul. Do norte, surgiram os Arte & Ofício, liderados pelo Sérgio Castro, e havia ainda uma outra que eram os Psico, que também eram uma banda de fusão».

Apesar das muitas bandas, a escassez era total: não havia meios técnicos, não havia instrumentos, nem grandes possibilidades de gravação, de promoção do trabalho efectuado. Mas a mesma juventude que tinha despontado para a vida com o 25 de Abril estava a despontar também para a música, para uma cultura jovem que não existia em Portugal. E com a mesma vontade de vencer um regime fascista, alguns desses jovens tomaram nas suas mãos a responsabilidade de rejeitar mais um sistema instituído: o de que, em Portugal, só havia espaço para as canções de intervenção. Com o relativo sucesso dos Tantra, outros jovens houve que se sentiram ansiosos por encontrar o seu lugar musical, numa altura em que ser músico significava um olhar de lado, uma incompreensão da própria actividade, e implicava também a necessidade de busca de outro meio de subsistência, já que ser músico em Portugal, na época, significava nenhum dinheiro ganho. Apenas um sonho vivido.

Com a chegada da democracia, o ímpeto de viver tudo de uma vez tornou-se ainda maior. Os partidos políticos aumentaram, assim como o debate de ideias, que punha os jovens em constante confronto intelectual, nos ginásios dos liceus, rapidamente transformados em espaço de albergue de concertos. A música estrangeira era devorada com enorme sofreguidão, e aos poucos foram pululando as bandas nacionais. Porventura, uma das mais importantes da época terão sido os Faíscas, estreados em 1978, no Pavilhão do Restelo, e apresentados como o primeiro grupo punk português. «Lembro-me que, em 78, pouco tempo depois de ter chegado do InterRail, houve um concerto no Pavilhão do Restelo, em Outubro ou Novembro, que reunia os Arte & Ofício, os Psico, e onde aparecia uma banda nova que eram os Faíscas. Eram uma banda punk, daí eu ter ido assistir ao concerto e ter-me tornado amigo deles, e ter andado com eles durante o tempo em que a banda existiu. Acabaram por nunca gravar nada. Os Faíscas terão sido a banda mais punk da altura», recorda Zé Pedro. O grupo reunia Paulo Gonçalves, Pedro Ayres Magalhães e Emanuel Ramalho. A indumentária era a requerida, baseada nos blusões de cabedal, e a música, a esperada, com temas muito rápidos. «Faíscas era a melhor banda do seu tempo. Era uma banda adequada a essa altura, a um mundo peregrino, quando não havia amplificadores, não havia guitarras, não havia nada, só havia conjuntos de baile e cantores de intervenção -- e queríamos fazer uma banda eléctrica, que fizesse música a que não chamávamos de rock.

Aliás, durante todos esses anos do rock português, em todas as entrevistas que demos, e nos concertos, eram os jornalistas a chamarem-nos de rock e nós a dizermos que não éramos rock, mas que fazíamos música moderna portuguesa, eléctrica, mas que não era rock. E nem éramos a juventude operária ou industrial que deixava os postos de trabalho para falar das suas condições de vida. Todos vínhamos de uma burguesia média alta, fazíamos aquilo com intenções artísticas e intelectuais. E essa aproximação que tínhamos à música era diferente da que o rock exigia. Na sua altura, os Faíscas já eram contra o explicar toda a música eléctrica como sendo rock, porque achávamos que isso só ia afastar os portugueses de se relacionarem com uma música eléctrica cantada em português. Por outro lado, o que queríamos, sim, era fazer concertos, criar ocasiões de convívio, criar um repertório em português, fazer comentários sociais, criar um sistema de convívio alternativo ao sistema bem-comportado que havia na altura. E acho que o fomos fazendo, nessa altura. Lá montávamos os concertos, fazíamos os cartazes, acartávamos com os instrumentos, como fizeram todas as bandas da nossa idade. E reunimos à nossa volta uma enorme vontade de fazer música», afirma Pedro Ayres Magalhães.

Dispostos a marcar a diferença, os Faíscas começaram a organizar concertos, criando a tradição das matinés de sábado, nos Alunos de Apolo -- onde terão inspirado o nascimento de outras bandas, como os Xutos & Pontapés, os Aqui D'El Rock, os UHF. Queriam que a sua importância fosse notada e instituíam as suas próprias acções de divulgação, já que não conseguiam entrar nos programas de rádio, nem nos jornais, e não havia música na televisão. Faziam uma fanzine chamada apenas «Faíscas», que distribuíam durante os concertos, com uma grande irregularidade e pouca informação.

A desatenção geral em relação ao que se passava com um novo género de música portuguesa era de tal ordem que não há registos fotográficos dos concertos dados, não há registos audio dos seus temas, com excepção de uma gravação efectuada por António Sérgio, para o seu programa de rádio, registo a que os músicos perderam o rasto. «Os Faíscas gravaram só uma vez para o programa «Rotação» do António Sérgio. Aliás, ele deve ser a única pessoa a ter essa gravação. Na altura não era uma coisa que nos preocupasse. Claro que gravámos umas fitas, mas ficaram em casa de não sei quem, e acabaram por se perder. Mas o António Sérgio fez uma gravação de um concerto que demos num clube em Lisboa, onde tocávamos muitas vezes», continua Pedro Ayres.

Perante a desatenção da industria discográfica face às novas expectativas do mercado, iam surgindo discos piratas, numa ânsia de divulgar o que mais ninguém divulgava, e de ver satisfeita uma curiosidade de um novo público, que emergia ao mesmo tempo que as novas bandas.

Os concertos, que rapidamente começaram a nascer nas caves de qualquer bar nas duas cidades maiores do país, eram divulgados de boca em boca, ou com pequenos panfletos, sabiamente colados às portas dos liceus. «Nessa altura, as pessoas nem sequer sabiam tocar mas acabaram por se associar ao nosso entusiasmo, que se demarcava e definia por oposição às bandas que existiam na altura, que tinham nascido nas gerações anteriores, e que eram apenas ou os tais conjuntos de baile ou os cantores de intervenção, ou as bandas de rock sinfónico que cantavam em inglês como os Psico ou os Arte & Ofício, ou os Tantra, que partiam dos ídolos da música rock e que faziam uma linguagem musical que se assemelhasse à realidade inglesa. E começámos precisamente por ir contra essa corrente. Mas tivemos sempre muitas dificuldades em fazer valer essa filosofia. E nessa altura era um entusiasmo muito pioneiro, difícil de explicar, e muito contra o espírito de Lisboa, que ou era queque, com o comportado social com os cafés e as praias e os carros; ou era a parte dos cantores de intervenção. Sempre fomos olhados de lado, mas isso ainda hoje somos, ainda hoje é difícil sermos olhados com dignidade, é um estatuto difícil de explicar às pessoas, a dignidade que a nossa actividade tem, as pessoas não lhe conferem dignidade, e na altura nem sequer sabiam o que era a nossa actividade», conta Pedro Ayres.

Com a intensidade da vontade de fazer música, instaurada pelos Faíscas, as iniciativas de concertos aumentavam. Novas salas surgem, como os Alunos d'Apolo. «Em Janeiro de 1979, decide-se fazer nos Alunos d'Apolo um concerto comemorativo dos vinte cinco anos do rock'n roll. É aí que os Xutos se apresentam pela primeira vez, e os Faíscas, pela última. Tenho a impressão que havia mais uma ou duas bandas por lá, mas nem me lembro quem eram. Aparecemos a actuar por eu ser muito amigo dos Faíscas, e eles ensaiarem na minha garagem... O Pedro andava sempre a picar-me para eu fazer uma banda. E foi assim que as coisas começaram», recorda Zé Pedro.

Com o final dos Faíscas, alguns dos membros da banda decidem não desistir do sonho que os havia unido. «Houve umas discussões internas nos Faíscas, e acabámos por decidir parar com o grupo. Foi assim que apareceu o Corpo Diplomático, que era um grupo diferente. Nesse já estava com o Carlos Maria Trindade, e queríamos ainda fazer algo diferente. Fizemos audições para cantores (um dos que foi prestar prova foi o António Variações) e o Corpo Diplomático já era um grupo, entre 78 e 80, diferente. Já gravou, para uma editora que era do António Sérgio, a "Nova", e esse grupo teve a mesma vida que os Faíscas. Fez alguns concertos, em Lisboa e pela província, organizados por nós ou inseridos em festas populares. O Corpo Diplomático gravou um disco muito giro, do qual ainda hoje gosto muito. Gravámos em três dias, e fizemos as primeiras partes dos Tubes, em Cascais... Era um espírito muito pioneiro. Claro que o disco que gravámos só passava no programa do António Sérgio...», ironiza o baixista.

Mas com o nascimento de muitas bandas, as editoras acabaram por ver nestes grupos a possibilidade de uma nova descoberta, de um elemento nunca antes pensado: o rock português. A esmagadora maioria das bandas durava pouco tempo -- os Faíscas, por exemplo, tiveram apenas um ano e meio de existência -- mas rapidamente os seus músicos se organizavam novamente, com outros colegas de profissão. O Corpo Diplomático -- Pedro Ayres, Paulo Gonçalves, mas também com Carlos Maria Trindade -- editou apenas um álbum, intitulado «Música Moderna», editado em 1980. E à excepção do programa de rádio de António Sérgio, o álbum «Música Moderna» não passou em mais lado nenhum, já que as rádios limitavam-se às canções de intervenção, ainda, e começava a descobrir-se a música brasileira, com José Nuno Martins, no programa «Os Cantores de Rádio». Os Corpo Diplomático, apesar da sensação causada através dos seus concertos, acabaram por definhar e pôr um termo à sua actividade -- aliás, o que viria também a acontecer à Nova. Mas nem tudo ia mal. Aos poucos, vão surgindo outros programas, outras pessoas interessadas.

Segundo Zé Pedro, «para todos os efeitos, o Rock em Stock deu bastante atenção a bandas, conseguiu mostrar algumas bandas nacionais, e misturá-las com as estrangeiras, o que foi bastante importante. Também havia um programa do Rui Pego, na Rádio Renascença, que era só de música nacional, que tinha um top e tudo, e que era um programa que se ouvia muito -- mesmo em viagem, ouvíamos sempre. Portanto, a nível de rádio, até se ganhou alguma projecção. Já na televisão, lembro-me apenas que havia o «Vivámúsica», que dava as notícias, e pouco mais».

De banda em banda, com tantas a aparecerem, com o investimento das editoras em algumas delas, com o sucesso alcançado com o álbum «Ar de Rock», de Rui Veloso, todo este movimento começou a ser intitulado de «boom» do rock português -- uma expressão tudo menos consensual. Para Zé Pedro, essa ideia de «boom» é verdadeira porque «acho que até aí não havia, ou pelo menos não se estava a ligar muito, ao facto de estarem a aparecer bandas . Fazia-se rock e punk, mas não se ligava muito. Nem às novas tendências, como os Police. O Rui Veloso, por exemplo, no «Ar de Rock» tem muitas pinceladas de Police. E depois do «Ar de Rock» houve uma enxurrada de bandas e um despertar bastante curioso do público, interessado em ouvir rock cantado em português, e apareceram as bandas todas -- até as bandas de baile apareceram a cantar originais. Acho que isso só se pode chamar "boom" do rock português, porque foi a primeira vez que se começou a vender rock português; foi a primeira vez que as bandas começaram a andar na estrada, e havia concertos».

Já Pedro Ayres Magalhães considera impossível concordar com essa ideia «porque me envolve a mim também quando acho que não era isso que eu estava a fazer. O Rui Veloso fazia rock cantado em português; fazia blues, com as mesmas notas, as mesmas malhas, cantado com letras em português; os UHF faziam o típico rock português, com as guitarras eléctricas e a bateria, mais as letras de intervenção. Mas nós [Heróis do Mar] não; fazíamos aquilo que achávamos ser uma música eléctrica, portuguesa, que também era música de dança, coisa que os outros grupos não andavam a cultivar, mas queríamos que o público sentisse isso. Aliás, já desde o tempo dos Faíscas que o nosso repertório era mais virado para a dança. Apesar de no caso dos Faíscas ser uma coisa mais inspirada no rock'n roll e o Corpo Diplomático ser mais virado para um rock new wave».

Com ou sem «boom», a verdade é que o final da década de 70 e o início dos anos 80 marcaram uma verdadeira revolução no universo musical português. Marcou também o início de uma batalha, ainda com muitos capítulos por escrever. As condições de trabalho eram más, os instrumentos e restante equipamento quase inexistentes. Como em qualquer outra revolução, o sonho era o único sustento. E a única inspiração. «O que é preciso deixar claro é que quem sempre gozou o prato fomos nós. Não lamento coisa nenhuma porque fui fazendo as coisas com muito entusiasmo, e com muito espírito de intervenção. E não há duvida nenhuma que eu, e os meus companheiros músicos, e as pessoas que se dedicavam à música e compreendiam o que estávamos a fazer, na altura, todos nos divertimos à grande», afirma Pedro Ayres. Com mais ou menos história, houve bandas que se mantiveram. Outras houve das quais só irão restar memórias.

ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL BLITZ EM 05.09.2000

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