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13 de Janeiro de 1979. Salão dos Alunos de Apolo, Lisboa. Festa comemorativa dos 25 anos do rock'n'roll. O cenário parece saído de um filme dos anos 50. No recinto enfumarado, homens trajados ao rigor da época, com as suas calças à boca de sino, camisolas de gola alta, blusões de cabedal e cabelo impecavelmente banhado a brilhantina, dançam com mulheres de saias rodadas, cai-cais ousados e botas de salto alto espanhol. No palco, os Faíscas de Pedro Ayres de Magalhães, hoje nos Madredeus, debitam os velhos êxitos de Chuck Berry, Eddie Cochran e Elvis Presley.

Já passa das 3h00 quando Tim, Zé Pedro, Kalu e Zé Leonel - o vocalista que ajudou a fundar os Xutos, mas que sairia ainda antes da gravação do primeiro "single" - invadem o palanque com os seus alfinetes de dama espetados no corpo e toda uma parafernália de pretos brilhantes, deixando a sala estarrecida com o seu rock puro, áspero e provocatório. No final dos meteóricos quatro temas originais, destilados em apenas seis minutos, um silêncio aterrador. Nem uma palma. Nem um assobio. Um profundo vazio. Os "Xutos & Pontapés Rock'n'Roll Band", como então se autodenominavam, sentiram-se os maiores. "O punk" - recordava recentemente o guitarra ritmo e fundador do grupo, Zé Pedro - "era tudo atitude, tudo o que pudesse chocar. Uma das maneiras de marcar posição era deixar as pessoas de boca aberta. Aquilo parou a sala inteira!".

27 de Novembro de 2003. A organização do "Rock in Rio" anuncia que os "Xutos & Pontapés" são o primeiro colectivo nacional com presença assegurada no mais importante festival de rock do planeta, dividindo o palco com os Guns'n'Roses e os brasileiros Charlie Brown Jr. O anúncio não causou espanto. Surpresa seria a ausência

daquela que é considerada, com justeza, a mais representativa banda nacional, que depois de amanhã celebra as suas bodas de prata.

"O percurso deles, os diferentes momentos porque passaram permitem-me aperceber a história da música popular portuguesa praticamente desde 1974, senão mais atrás", garante Pedro Félix, o antropólogo e etnomusicólogo de 30 anos que tem dedicado o último ano e meio da sua vida a dissecar o fenómeno Xutos. O trabalho, a primeira tese de doutoramento escrita em Portugal que terá como objecto de estudo uma banda rock, começou por ser uma abordagem em torno da "popular culture" e da "popular music", ou, dito de outra forma, da música de tradição anglo-saxónica, vulgo pop/rock, da indústria discográfica e do espectáculo, e das suas representações, mas quando "tropeçou" nos Xutos, apercebeu-se que encontrara "um universo esmagador". 

"Encontrei aquilo que me apetece chamar um paraíso etnográfico, uma espécie de Melanésia, os nossos Argonautas do Pacífico", afirma, brincando com o título de Malinowski. "É absolutamente impressionante. Nem nas minhas mais optimistas projecções pensava encontrar uma coisa assim", confessa o investigador, que alguns fãs baptizaram carinhosamente de "Dr. Xutos", referindo-se aos milhares de horas de rádio e de televisão, centenas de milhares de artigos de jornal, livros, biografias, sites na Internet, letras, cartazes, discos, filmagens, fotografias, etc., que têm retardado o fim do trabalho de campo e o início da escrita. "Neste momento, só com notas de terreno, aquilo a que chamamos diário de ponto, tenho mais de duzentas páginas no computador. E não estou a falar da análise de materiais, que isso é outro tanto, no mínimo...". 

Mas de que massa são feitos afinal os Xutos? Como explicar este fenómeno transgeracional, que arrasta milhares de fãs de Norte a Sul do país, que cantam em uníssono os maiores hinos da banda, compram os discos e até se vestem "à Xutos", com roupas negras, lenços vermelhos nos braços e ao pescoço? Ou que adoptaram símbolos próprios, como o cruzar de braços em xis apontando ao céu, um original rito vislumbrado pela primeira vez em meados da década de 80, num concerto no Pavilhão do ABC, em Braga? Pedro Félix hesita antes de responder. "É uma pergunta recorrente, que eu próprio faço, mas não existe uma resposta eficaz e definitiva. Há muitos factores que passam, naturalmente, pelo material sonoro, pela música em si, que é construída de maneira a que não só capta a atenção do público, como inclusive provoca reacções particulares nesse público".

O reconhecimento que as músicas dos Xutos "têm uma assinatura", uma identidade que as pessoas "reconhecem no som e que é muito coerente" é uma realidade dura de engolir para os críticos que acusaram as canções da banda de responderem a preocupações da cintura social operária da periferia de Lisboa, o que é certamente injusto quando as letras cantam o drama do desemprego, da habitação, dos salários em atraso, o que, tirando a sua roupagem rock, radica, porventura, na tradicional canção de intervenção.

E, depois, há algo de muito próprio, um conceito difícil de materializar, mas que Pedro Félix considera muito importante para a cultura popular, neste caso o rock. Chamemos-lhe genuinidade, ou autenticidade, se preferirem. "É algo que cativa as pessoas e que tem a ver com o carácter individual dos músicos. São pessoas que vemos como extraordinárias, para além do comum, mas, ao mesmo tempo, são pessoas que encontramos na rua e que nos recebem com grande agrado. Têm aquela imagem intangível, transcendente do artista, mas podes encontrá-los no café e falar com eles".

É essa simplicidade, essa humanidade, esse modo de ser sedutoramente "banal" que os distingue. Ou melhor, que em vez de os afastar no meio da multidão, os aproxima, porque, apesar do sucesso, eles são demasiadamente parecidos ao comum dos mortais. São "tipos simples", nas palavras dos fãs, humanos, que cometem erros como todos nós: as "bezanas" por pouco não iam saindo caras a Zé Pedro, que em Agosto de 2001 esteve às portas da morte - o próprio admite que se tivesse entrado duas horas mais tarde no hospital teria morrido - devido a uma hemorragia provocada por uma ruptura num vaso do esófago, agravada por uma cirrose hepática que o guitarrista desconhecia ter. Ou pormenores mais triviais, como a aparente indiferença gélida do pacato João Cabeleira enquanto brinda a audiência com mais um brilhante "solo", a energia do Kalu, ou os sorrisos do Zé Pedro e do Tim. 

Os fãs não podiam estar mais de acordo. "São super humildes", afirma a simpática Vanda Natálio, 32 anos, que segue os Xutos desde meados da década de 80. "Não têm nada de vedetismos e lidam com os fãs de uma maneira que duvido que muitas outras bandas o façam. São recíprocos, atentos, reconhecem o nosso carinho e sabem dar valor aos que andam atrás deles", sintetiza.

Tim e Zé Pedro acrescentam outra explicação para a longevidade do agora quinteto. Sentados numa sala do 4.º esquerdo do nº.182 da Rua Rodrigo da Fonseca, em Lisboa, o escritório onde é tratado tudo o que gira em torno do colectivo, a voz e o guitarrista dos Xutos lembram os obstáculos que tiveram que ultrapassar ao longo da carreira, sobretudo nos primeiros anos, e que ajudaram a moldar a sua personalidade.

"Começámos com aquele espírito de ter uma banda de rock'n'roll e já na altura falávamos que íamos ser grandes, assim um bocado em sonhos", recorda Zé Pedro. O tempo confirmou a profecia, mas não foi, contudo, fácil a escalada que transformou Tim, Zé Pedro, Kalu, João Cabeleira e Gui - o saxofonista que durante anos esteve com um pé dentro e outro fora e que voltou a integrar o grupo a tempo inteiro - numa instituição do rock nacional e em ícones da cultura popular do nosso tempo.

Para trás ficaram os ensaios na velhinha escola de música Senófila (que teve os seus tempos áureos nos anos 50, mas que, na época, se mantinha sobretudo graças ao aluguer de equipamentos para festas e da sala de ensaios, por onde passaram grande parte das bandas portuguesas) e os espectáculos que se multiplicaram entre liceus, prisões e, imagine-se, até um cacilheiro.

Foi, aliás, na estrada, de concerto em concerto, que os Xutos granjearam a sua fama. "Os Xutos em disco resultam muito bem e conquistam o nosso coração, mas ao vivo roubam-nos a alma de vez", defende Pedro Silva, um fã de 18 anos que envia regularmente desenhos ao colectivo lisboeta, em especial a Zé Pedro, e conquistou mesmo o 3.º lugar num concurso nacional de BD com duas pranchas onde transpôs uma interpretação do tema "Conta-me Histórias", do álbum "Cerco".

A banda nunca escondeu que é no palco que se sente melhor e, nos primeiros anos, quando procuravam a sua afirmação, não hesitavam em aparecer onde houvesse um palco, pedindo para tocar, muitas vezes com material emprestado. Essa dedicação está bem documentada em "Conta-me Histórias", a biografia oficial assinada em 1991 por Ana Cristina Magalhães, que conta, pela voz dos artistas e de quem os acompanhou, a ascensão do grupo, aliada a uma imagem de persistência e combatividade que ajudou a ultrapassar muitos das barreiras que se foram levantando à afirmação do colectivo. Uma das revelações mais interessantes do livro é a de que, na altura da criação da banda, as capacidades musicais do seu líder se resumiam a três acordes que o pai lhe ensinara numa viola de caixa. "Nós não éramos músicos perfeitos", admite Zé Pedro. "Eu não tocava nada de guitarra. Uma vez até ia sendo posto fora da banda...(...) O Zé Leonel, o Tim e o Kalu encostaram-me à parede: 'ou aprendes a tocar ou vais para a rua'". A julgar pela amostra, valeu a pena a persistência.

É essa atitude que leva Zé Pedro até António Sérgio, na altura autor de uma "ilha nocturna" na Rádio Comercial dedicada ao rock e que fundaria a editorial independente "Rotação", responsável pelo lançamento do primeiro registo dos Xutos. O polémico "single" "Sémen" - o tema foi durante anos proibido na Rádio Renascença devido à sua linguagem tabu, assim como o foram "Mãe", "Avé Maria" e "Toca e Foge" - sai em 1982, mas é só em 1984, com "Remar, Remar", talvez o trabalho que melhor encarna esse espírito de combate, que o grupo dá definitivamente o salto para a rádio, com o single homónimo a tomar de assalto a tabela "Cor do Som - Nós por Cá" do "Se7e" (semanário). A confirmação do talento chegaria logo depois, com os álbuns "Circo de Feras", em 87, e "88", um ano depois, e os estrondosos êxitos "Contentores" e "A Minha Casinha", já com a "major" Polygram, a catapultar definitivamente os Xutos para o estrelato.

O resto da história toda a gente conhece, embora o caminho não se fizesse sem mais um (grande) percalço, que, de uma maneira estranha, acabou por influenciar positivamente o futuro do grupo. Do sucesso estrondoso ao iminente colapso foi afinal um pequeno passo, para o qual contribuíram decisivamente os "contratos assinados de cruz", as discussões em torno do dinheiro e os problemas com o "manager" da altura, Vítor Silva. Foi "a banhada", o período negro dos Xutos, como conscientemente recordam os músicos. E não fosse um ressuscitador telefonema do baterista Kalu, muitos meses depois de os membros praticamente se terem deixado de falar, podia muito bem ter sido o epílogo de uma carreira apoteótica.

"As coisas começaram a correr muito depressa e um 'gajo' deixou-se ir. Havia dinheiro, havia facilidades, havia tudo e um gajo não se pergunta", sentencia Tim, admitindo que os músicos não estavam ainda preparados para lidar com o sucesso. "Aquilo estava a ser empolado, tipo 'soufflé'. Estava a crescer, mas a base, que era a música, os concertos, foi ficando para trás, não estávamos a tocar assim tão bem". A cassete tinha acabado. Era preciso trocá-la por uma nova.

Os Xutos regressaram, com uma atitude renovada, procurando reconquistar a tribo que, meses antes, enchia o pavilhão do Restelo. "Foi passar de um ano em que tocávamos para 5000, 6000 pessoas, tudo eufórico, tudo aos berros, para concertos para 60, 70 pessoas". Foi um momento de "reconquista do público", recorda Tim, que a banda executou com mestria, ou não tivesse ela cultivado, desde o início, uma relação próxima, quase umbilical, com uma multidão de fãs.

"Os Xutos são a primeira e única banda que conseguiu aquele ideal que partilhávamos todos no início - criar uma legião de interessados, em que conseguiram espalhar as palavras, a imagem, e até a atitude, por uma massa de gente que não é forçosamente proletária", acentua Pedro Ayres de Magalhães em "Conta-me Histórias". O crítico António Cabrita, num texto publicado no "Expresso" no final da década de 80, vai mais longe: "Os putos adoram-nos e as meninas ficam tristes com a 'abstinência' dos músicos. (...) Em coro, pais, filhos e sobrinhos jubilados numa 'geração perdida', reconhecem-se no tumulto da música, da camaradagem e da reinação. Eles nunca tiveram problemas com o público e o público absorve-lhes os autógrafos, os refrões e as vibrações. Até os mudos e deficientes despertam".

Exageros à parte, é justo reconhecer que os Xutos foram uma das primeiras bandas nacionais - porventura a única - a atingir o estatuto de banda de culto e a melhor ultrapassar a barreira que os separa da audiência. A génese do fenómeno está certamente nos álbuns "Circo de Feras" e "88" e nos êxitos "Contentores" e "A minha Casinha", mas a banda defende que as sementes foram lançadas antes. "Os nossos fãs começaram por ser os nossos amigos do punk, principalmente aqueles que iam aos espectáculos. Quando acabámos o nosso segundo concerto, no D. Pedro V, tínhamos à nossa espera uma dezena de punks da Amadora que queriam ir 'curtir' connosco porque tinham 'gramado' a onda", conta Tim, que lembra que os fãs sempre foram uma "âncora" fundamental. "Eram as pessoas que [no início] nos ajudavam a pôr aquilo de pé, que faziam a diferença nos concertos. No recomeço, quando voltámos, é um pequeno grupo que nos apoia e dá força para continuar".

Os fãs são um caso à parte. Um público especial dentro do público, a alma dos músicos. São os amantes fiéis e incondicionais, que guardam religiosamente todos os discos, autógrafos, bilhetes de concertos, cartazes, recortes de imprensa, palhetas, baquetas, t-shirts e bandanas. Ou que fazem 250 quilómetros para ver um concerto numa cidade e nova maratona no dia seguinte para acompanhar a sua banda de eleição. "Faço, em média, uns 30 concertos por ano. Só não vou quando não posso", confirma Vanda Natálio, que traz tatuado no peito um X que "ofereceu" de presente de aniversário quando a banda comemorou 20 anos de carreira. "Foi a primeira e a última!", confessa num sorriso, sem se importar muito com as dores que sentiu na altura. "Hei-de gostar dos Xutos até ao último dia, nunca me vou arrepender. É um vício que me está no sangue. Costumo dizer que são a minha segunda família. Eu respiro Xutos, vivo para os Xutos. As pessoas não compreendem que isso faz parte de mim".

Os músicos percebem-no facilmente, ou não tivessem eles começado também assim, como consumidores ávidos. Mais do que responder a cartas e "e-mails", tarefa geralmente deixada ao cuidado do clube de fãs e do "staff" da banda, privilegiam o contacto directo depois dos concertos. "Durante muito tempo, fizemos muitos amigos nessa situação", sublinha Tim. Também por isso, todos os anos, os Xutos fazem questão de comemorar o aniversário com os membros do "Clube X", um dos mais antigos e resistentes clubes de fãs do país, muitas vezes seguido de um concerto privado. Este ano, o ritual repete-se, excepcionalmente no dia 16, no Hard Club, em Gaia, mas a "manager" Marta Ferreira, irmã de Kalu, já avisou que este ano não haverá espectáculo. No fórum criado no "site oficial" do grupo, um elemento fundamental no estreitar de laços entre os fãs, que intervêm regularmente com tudo o que tenha a ver directa ou indirectamente com os seus artistas de eleição, as opiniões dividem-se. Alguns torcem o nariz, outros desconfiam. Terão os Xutos alguma surpresa preparada?

NELSON MARQUES

ARTIGO PUBLICADO NO DIA 11/01/2004 NA REVISTA "PÚBLICA"

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