“Loucura! Loucura! Loucura controlada... sem medicamentos... sem camisas de força! Loucura controlada pela vossa inteligência e pelo amor! Adeus, adeus... obrigado, obrigado!...”
Com estas palavras épicas, sem dúvida, declarou-se aberto o festival de Vilar de Mouros de 82, pela voz do dr. Barge, essa mistura deliciosa de português à moda antiga e de louco sem idade. Eram cerca de 22.30 e o público começava a impacientar-se...
Entre coelhos e estranguladores
Um riozinho mimoso, uma meiguice bucólica, uma paisagem campestre subitamente invadida por uma estranha romaria. Bonito e curioso, um painel cheio de contrastes – porreirinho. Sobre o palco, finalmente, Echo & The Bunnymen, a bandazinha deliciosamente atormentada de Ian McCullogh, e, presentemente, uma das minhas favoritas. Não desiludiram, os Bunnymen.
Recebidos com a pompa e a circunstância de superstars, os Stranglers acabaram por ser a grande desilusão da noite. Para eles, de facto, a hora da retirada estratégica parece ter soado... Terminada parece estar a época dos concertos/happening, da algazarra tempestuosa. Agora, as palavras-chaves são o rigor, a frieza, a distância. Estranguladores estrangulados pela perfeição normal.
A importância de ser Zé Pereira
Por mais herética que possa parecer esta afirmação, não me parece ter sido Vilar de Mouros o lugar ideal para um concerto clássico – pelo menos para aquele concerto clássico. No fundo, sob a capa de uma convivência entre tradições musicais e públicos diferentes reunidos num espaço comum, o que se passou, em parte, foi a simples transposição da ambiência geral de uma sala de concertos tradicional para o campo, para o ar livre.
Neste sentido, se não deixou de ser interessante apreciar o contraste cómico entre a casaca de Vitorino de Almeida e as fatiotas sem dúvida peculiares dos Claudius Qualquerius do rock, forçados ali, um pouco contra-natura, a curtir uma de clássica; se não menos interessante notar como essa mesma casaca contrastava com a poeirada que se erguia no ar e nos impestava a todos de alto a baixo, o certo é que, se não fossem os Zés Pereiras, os seus tambores, o seu ritmo, a sua exuberância contagiante, tão próxima do rock, afinal, talvez nos tivéssemos todos limitado a caricaturar o S. Carlos, o S. Luís ou a Gulbenkian, numa paródia burlesca a uma verdadeira convivência entre géneros e tradições musicais diversas, obviamente desejável. E depois, aquela sinfonia (des)concertante...
Os anti - heróis
Suponho que com o objectivo – muito válido, certamente – de divulgar a cultura do Minho e a sua música, se incluiu no programa a desfolhada à minhota. Só que, efectivamente, aquilo não resultou. Não resultou, porque não podia resultar num palco daqueles, com aquelas luzes, naquele ambiente muito mais virado para outro tipo de de acontecimentos.
Uma vez desfolhada a espiga, vieram os The Gist – uma banda originada a partir dos defuntos Young Marble Giants. Os Anti-heróis por excelência. A fusão inteligente, ingénua e original do músico com a electrónica, aqui claramente posta ao serviço do homem e não o contrário... The Gist foram em Vilar de Mouros a recusa do supérfluo, a provocação atrevida.
Você também?
Pondo de lado a inútil e despropositada tirada antifascista de Vitorino de Almeida (outro incansável linguajar fácil em Vilar de Mouros), a noite de Terça-feira começou com actuação banal da Orquestra (!?) Mikis Theodorakis. Entoando umas melopeias ditas de intervenção, melopeias de sempre para antifascistas, a referida Orquestra (!?) sumiu-se da mesma forma como apareceu – ninguém deu por isso.
Após a actuação relâmpago de Carlos do Carmo, que afirmou estar em Vilar de Mouros com propósitos inteiramente pacíficos (numa brilhante tirada que comoveu toda a assistência), os Jafu´mega foram a primeira banda portuguesa a subir ao palco, dada a ausência dos Heróis do Mar no primeiro dia. Baseando a sua actuação essencialmente em temas do seu segundo álbum, os Jafu´mega revelaram-se aquilo que são: uma banda dotada de músicos de boa craveira (com especial realce para o guitarrista Mário Barreiros – estupendo! – e para Zé Nogueira, no sax), fazendo uma música cuidada, uns quantos furos acima do que é comum nas chamadas bandas de “rock português”.
Finalmente a coqueluche da noite, o primeiro momento verdadeiramente alto do festival. No palco, U-2, uma banda cujo primeiro trabalho – “Boy” – se encontra editado em Portugal, embora esgotado.
Porque os U-2 são um caso único. O que é que eles tocam afinal? Qual o género em que se enquadram? Nenhum. Em todo o caso não é nem novo nem moderno. Vestem-se como se estivessem em casa e tocam os seus instrumentos como se o mundo deixasse de existir à volta deles.
Obcecada pelo público, a banda rapidamente se torna imbatível no palco: uma voz que fere e emociona, guitarras que inundam, um ritmo diabólico que vibra até à saturação.
Lá, onde outros grupos se apoiam nos truques mais corriqueiros para impressionar e cativar o público, os U-2 surgem-nos armados apenas de uma honestidade humilde, desmunida, ingénua, mas cem por cento eficaz.
E Bono, levado pela densidade empolgante de todo aquele ritmo explosivo, erguido no ar pela guitarra dilacerante e enorme de The Edgde, vai aos poucos, através do seu lirismo instintivo, subjugando a multidão – sem se dar por isso, com uma dignidade natural, diluindo-se progressivamente no fluxo sonoro, para o “apaziguar”, através de uma inflexão violentamente interior. Em suma, foi este vaivém instável, este desiquilíbrio eléctrico e pungente que fez da música dos U-2 em Vilar de Mouros uma das mais combativas, persuasivas e atraentes apresentada ao longo do festival. Uma música unidimensional, sem dúvida, mas, sobretudo, visceral.
Johnny Copeland veio a seguir. O blues do Texas. Apesar do êxito retumbante dos U-2 pouco tempo antes, não foi difícil a este bluesman soberbo agarrar o público, chamá-lo a si.
...Enfim, Jonny Copeland: a continuação desejada para o caminho anteriormente aberto pelos U-2.
Jazz, Jazz, Jazz...
Finalmente, o jazz. Após a ausência forçada e um tanto inesperada dos Old & New Dreams, que, dois dias antes, deixara muita gente desiludida, chegara o momento de destemperar as orelhaças com outras sonoridades, outras estéticas.
O quarteto de Saheb Sarbib foi o primeiro. Com Paul Motion (bateria), Joe Ford (sax soprano) e Booker T (sax tenor), além do próprio Saheb Sarbib no contrabaixo, estes quatro músicos encheram o recinto com uma música rigorosa, um trabalho interessante e homogéneo, com alguns momentos de rara beleza e emoção.
Rão Kyao foi, sobretudo, uma vítima das circunstâncias. Abstraindo-nos agora de quaisquer problemas havidos com a organização, sucedeu Ter sido no momento da sua actuação que ocorreram os incidentes junto da paliçada, com consequente desvio de atenção de grande parte do público para outro tipo de acontecimentos protagonizados pela GNR e por algumas dezenas de indivíduos que tentavam – e conseguiram – entrar sem pagar, derrubando a paliçada.
A actuação de Anar Band acabou por não ser mais feliz do que a de Rão Kyao, embora por motivos diferentes. Pomposamente fantasiada com o epíteto de “música de vanguarda”, espalhafatosa na sua apresentação, aparatosa na sua redundância, no final, apenas a sensação vaga de nada Ter sucedido.
Por fim, e a culminar uma noite apesar de tudo positiva em termos musicais, um dos momentos mais ansiosamente esperados de todo o festival: a actuação da Sun Ra Arkestra.
A primeira conclusão a tirar é: não é possível rotular esta música, porque ela, simplesmente, foge a qualquer tipo de de etiqueta. De Ellington a Count Basie, passando, sobretudo, pelo free; tambores africanos e o sax epiléptico de John Gilmore; bailado de influências ocidentais (um pouco desenquadrado de toda aquela euforia negra) e um dançarino capaz de recriar em cada movimento todo o mistério do sentir africano; por fim, a culminar, um maestro fabulosamente negro (Sun Ra), um Gungunhana do palco, um músico que, não obstante a obesidade, acaba por ser ainda mais escorregadio que uma enguia. Eis Sun Ra Arkestra: um espectáculo musical e uma cerimónia litúrgica. Uma forma fabulosa de entretenimento e um jazz que, englobando os mais diversos estilos, acaba por ser em si mesmo um estilo.
... o concerto da Arkestra foi a chave de ouro com que se encerrou Vilar de Mouros em termos de jazz.
A beleza do silêncio
Contratados à última hora por razões obscuras, os Renaissance vieram a Vilar de Mouros demonstrar que, apesar de fora de moda, o chamado rock sinfónico ainda reúne muitos adeptos em Portugal. Fazendo uma música que integra elementos clássicos com algumas influências folk, possuidores de um som personalizado e forte todo ele construído em volta de Jon Camp (baixo) e da voz magnífica de Annie Haslam, os Renaissance podem na verdade não Ter deslumbrado, mas certo é que também não desiludiram.
Com os Durutti Column atingiu-se mais um momento privilegiado em Vilar de Mouros. Uma bateria e uma guitarra. De vez em quando um piano eléctrico. O uso e o abuso consciente do eco, como forma de definir um estilo, uma música. O eco. Luminoso e ondulante, marítimo e interior, a utilização exacerbada do eco assume nos Durutti Column um papel fundamental. A música do tempo interior. Apaziguante e bela. Comovente e frágil – a fragilidade dos titãs.
... Memória e silêncio jardins, flores e infância, com os Durutti Column a viagem faz-se, sim, mas para dentro. Em direcção ao tempo perdido.
O rodopio saboroso do caos
No Sábado, penúltimo dia do Festival, e antecedendo o último grande momento deste Vilar de Mouros 82, tivemos em versão reduzida uma actuação (a última?) dos GNR. No fundo, uma Anar Band revisitada e (felizmente) melhorada – talvez pela presença e força cénica e interpretativa de Rui Reininho; talvez pela ausência (no palco) de Jorge Lima Barreto.
Por fim, os Rip Rip and Panic...
Um baterista epiléptico, um baixo black funky com visual rasta, eis a base de sustentação rítmica sobre a qual se iria fundar cada um dos temas. Um ritmo completamente infernal, cataratas do Niagara a domicílio, servindo de ponto de partida para o delírio de cada um.
...E com os Rip Rip and Panic estava, praticamente, o Festival terminado.. De facto, nem a Tom Robinson Band (chamada à última hora para substituir os Hawkwind, impedidos de vir por um dos seus elementos se ter ferido numa mão), nem A Certain Ratio, conseguiram conduzir o concerto em crescendo até aos eu final. Tom Robinson pode ser simpático, pode ser um mestre em fazer músicas catitas para pôr toda a gente a cantar, mas está longe, muito longe, de ser qualquer coisa mais do que isso ( o que jáo é pouco, podem dizer-me...); quanto aos A Certain Ratio, após tê-los visto, parece-me fazerem uma música demasiado pretensiosa, tendo em conta os resultados obtidos – que, convenhamos, foram bastante exíguos.
Carlos Marinho Falcão
(Música & Som nº75 de Setembro de 1982)