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Programa de rádio, revista semanal e suplemento de "A Capital"

RÁDIO COMERCIAL

1ª série - de 24/05/1981 a 27/12/1981

2ª série - de 17/10/82 a 29/5/1983

REGRESSO

Programa emitido a 17 de Outubro de 1982

Abertura

O Pão Comanteiga regressa.

A pedido de várias famílias, de colectividades espalhadas por todo o país e até em Lisboa, de ouvintes deprimidos, desesperados e, sobretudo, chateados. Regressamos com a nossa consciência de serviço público e de habilidade estonteante, sabendo que o nosso regresso era desejado, se não por todos, pelo menos por alguns; e, desses alguns, se todos não nos desejavam ardentemente, pelo menso uma parte sentia saudades de tal modo atrozes, que se afundaram no vício e na perdição, sentindo impulsos irresistíveis de comer as próprias meias ou assassssinar gafanhotos – numa tentativa vã de afastar o tédio.

Foi a pensar nesses ouvintes, nesses portugueses verdadeiros, que arriscaram a sua sanidade mental e mesmo a sua intercorrência, para nos ouvirem 3 horas por semana durante 2 anos, que o PcM decidiu regressar, sem ofender qualquer opção política, aos microfones da Rádio Comercial.

Constituição da equipa:

Dando com a língua no dentes, Carlos Cruz, malabarista, intruso persistente, alto e tisnado pelo sol da Cruz Quebrada, mais de 30 anos, engenheiro da palavra e técnico do feminino plural, adorador de deuses esquisitos, flibusteiro e risco ao meio. E, por trás dessa personalidade broncopulmonar, outras figuras perigosíssimas, a saber: Bernardo Brito e Cunha, mais de 30 anos, formado em música ligeira e tango de guerra, coberto de pelos por todos os lados, excepto por um, chamado bigode, estudioso do vernáculo e do mogno indiano, amante da mística renascentista e de amendoins com mostarda; José Fanha, mais de 30 anos, licenciado em esquadrias e tectos falsos, eloquente e sagaz, bom rapaz, samaritano condigno, alma minha gentil e acento circunflexo, almofadado por fora, barrado de ideais caucasianos por dentro; Artur Couto e Santos, licenciado em cérebros paralelos, imaginações voláteis e delírios consistentes, sisudo mas triste, sobretudo aos domingos, dobrado de riso e encharcado em lágrimas; Mário Zambujal, mais de 30 anos, especialista em sorrisos de salsaparrilha, versátil, dobrável e inquebrável, escrivão dedicado de palavras com letras, dedilhador inverosímil e tal; José António Pinheiro, 30 anos, licenciado em algarismos árabes e símbolos esotéricos, curvado pelo peso de penas de pato, dolorido e indolor, amante de álamos e outros ruminantes; e José Duarte, mais de 30 anos, concubino do jazz, simulacro de contrabaixo, enciclopédico atrevidote, profissional de ideias coleccionáveis e de convites volúveis, detesta fusíveis.

E é esta a equipa conversível e profunda que, semanalmente, fará o PcM – um programa humilde.

O regresso

O regresso... ai, o regresso!...
Como diria o poeta – se, para tanto, imaginação tivesse – “regressar é viver”.
Mas para regressar é preciso partir. Para partir é preciso alguma força. E a força nasce da união. E para nos unirmos, precisamos de estar mais perto uns dos outros. Mas para estarmos mais perto uns dos outros, é necessário regressar ao ponto de partida. E a partida é dada pelo chefe da estação. E a estação mais bonita é, sem dúvida, a Primavera. E a Primavera é anunciada pelas andorinhas que regressam. Mas, para regressarem, as andorinhas precisam, primeiro, de partir. Para partir é preciso baralhar primeiro. E para baralhar é necessário confundir. E para confundir é necessário dizer meias verdades. E para dizer meias verdades é preciso falar aos soluços. E para falar aos soluços é necessário que eles nos oiçam. Mas nós não queremos apenas que eles nos oiçam – queremos também que eles nos compreendam. E para sermos compreendidos, precisamos de utilizar uma linguagem simples e directa. E para usar essa linguagem há que regressar ás origens. Mas para regressar é preciso partir. E para partir pode ser necessário bater. E depois, alguém perguntará: “quem é?” Depois, nós responderemos: “sou eu”. Mas quem sou eu, afinal? Para responder a esta pergunta é essencial conhecermo-nos melhor. Para nos conhecermos melhor é essencial regressar ao princípio. Mas, para regressar ao princípio, é necessário, primeiro, partir...

Histórias do regresso

Primeira

O general abriu o alçapão e desceu os degraus da velha escada de madeira. Por ali havia fugido o assassino do Presidente há menos de 10 minutos e o general seguia-lhe a pista.
Astuto e alto, o general teve que ir de gatas porque o túnel subterrâneo não tinha mais que um metro de altura. Às apalpadelas, o general avançou lentamente, pistola em punho, dedo no gatilho, pronto para qualquer eventualidade. Minutos depois atingiu a saída do subterrâneo, em pleno jardim do Palácio Presidencial. Na terra encharcada pela chuva da noite, o general não teve dificuldade em seguir as pegadas do assassino, que se dirigiam para o Palácio.
O general estugou o passo. Ia apanhá-lo! Entrou na Sala Principal e deparou com um sujeito bem vestido, que examinava o cadáver do Presidente.
“O criminoso regressa sempre ao local do crime...” – pensou o general e, sem hesitar, premiu o gatilho três vezes, com a pontaria do costume. De imediato foi detido pelo assassínio do Presidente auto-proclamado há 5 minutos.
Coisas da política!...
(também publicada na Revista Pão Comanteiga nº16, janeiro 1983)

Segunda

Há 35 anos que esperava pelo regresso do Alfredo. Nos seus sonhos de mulher solitária, evocava a sua imagem com volúpia: era um homem alto, moreno, nariz adunco e queixo voluntarioso. Partira em busca de fortuna já lá iam 35 anos. Mas, finalmente, cansado de calcorrear o mundo, decidira regressar e ela esperava-o no aeroporto, com olhar ansioso.
Os passageiros começaram a surgir, em grupos, carregando malas e embrulhos, e ela procurava-o com sofreguidão. De súbito, vislumbrou um homem alto, moreno, nariz adunco e queixo voluntarioso. Não mudara nada – era como se aqueles 35 anos o não tivessem afectado. Esqueceu, por momentos, o reumático que a afectava e, num impulso reprimido há tantos anos, abraçou apaixonadamente o filho do Alfredo...

Terceira

“Passas o dia todo na brincadeira! Faltas às aulas! Não pegas num livro!” – bradava a mãe preocupada – “Isto assim não pode continuar! Logo à noite, quando o teu pai regressar do trabalho, levas uma tareia que é para aprenderes!”
O pai regressou, zangadíssimo, e começou por lhe dar uma estalada. O miúdo respondeu com um upercut, que atingiu em cheio o maxilar do paizinho.
Desde que trocara a catequese pelo boxe que se sentia muito mais desinibido...

(também publicada na Revista Pão Comanteiga nº16, janeiro 1983)

Quarta

Quando bateram à porta, os dois amantes estremeceram na cama.
“É o meu marido!” – exclamou ela, que nem sequer era casada.
É o que faz a tradição anedótica...

Quinta

Quando, 20 anos depois, regressou a casa, a mulher havia partido há 12 anos, cansada de esperar durante 8 anos pelo seu regresso. A filha, que completara 2 anos quando ele partira, saíra de casa há 4 anos, quando atingira a maioridade, 16 anos depois de ele partir e 4 anos depois da saída da mãe. O seu filho – um esbelto rapaz de 26 anos – tinha apenas 14 anos quando a mãe abandonou o lar, 8 anos depois dele e não assistiu à partida da irmã, pois aos 16 anos, quando ela completara 12 anos, ele partira também, 10 anos antes do regresso do pai.
Desistiu de os procurar.
Detestava matemática!

Sexta

“Meu amor! Regressei finalmente! Ao fim destes 5 penosos anos cheguei à conclusão de que não vale a pena viver sem ti! Sem ti, o sol não tem calor, a lua é um satélite estúpido e anémico, a primavera é uma sucessão de dias chuvosos e tristes! Sem ti, meu amor, minha querida, minha pérola real, o meu coração parece bater mais devagar, preguiçoso em enviar o sangue que teima em congelar nas minhas veias! Sem ti, meu tesouro, minha abelhinha, nada tem valor, nada presta, nada interessa, tudo é baço, turvo, desfocado e descolorido! Que parvo que eu fui ao pensar que poderia passar sem ti, que poderia viver sem o veludo das tuas mãos, sem a luz dos teus olhos, sem a seda dos teus cabelos! Mas agora regressei e vim para ficar! Apaguemos das nossas memórias estes 5 tristes anos em que vivemos afastados e recomecemos tudo de novo!”
“Ah, és tu...” – disse ela – “deixa-te de lamúrias e anda para a mesa que o jantar está a arrefecer...”
(também publicada na Revista Pão Comanteiga nº16, janeiro 1983)

Sétima

O cavaleiro Bellevue Quatre-vingt-quatre regressava ao seu castelo, após mais uma longa e sangrenta batalha.
Sua jovem mulher, saudosa, correu para ele de braços abertos e colou o seu corpo fremente ao dele.
Um grito ecoou no pátio do castelo.
O cavaleiro Bellevue Quatre-vingt-quatre esquecera-se de embainhar a espada.

Frases

* “ quando regressares a casa, não venhas com as mão a abanar...” – disse Jane a Tarzan – “podes escorregar das lianas...”

* Regressou ao passado. Estava farto de bifes em sangue!

* E quando os cientistas quiseram que aquele peixe regressasse às origens, ele exclamou: “Uma ova!”

* E quando regressou ao Poder, aquele político decidiu não cometer os mesmos erros. Cometeu outros...

Volta Gumerzindo! Estás perdoado!
Esta casa já não é a mesma desde que tu partiste!
Mandámos arranjar a televisão que tu avariaste!
O paizinho reconstruiu a mesa que tu quebraste!
A mana gastou uma semana inteira, mas conseguiu cozer todos os lençóis que tu rasgaste!
A vovó Lurdes levantou o dinheiro da reforma e comprou outro serviço de chá para substituir o que tu escaqueiraste, naquele dia em que estavas mal disposto!
Mas tudo isso já passou, Gumerzindo! O tempo tudo cura e nós não podemos passar sem ti!
Olha, os vidros das janelas que tu partiste, já foram substituídos.
O tio Reboredo comprou outra enciclopédia, igualzinha à que tu rasgaste.
Claro que pintámos a casa toda e agora já não se vêem aquelas manchas de gordura que tu fizeste quando limpavas as mãos à parede.
O avô Lopes abriu os cordões à bolsa e ofereceu alcatifas novas, para substituir as que tu retalhaste com a lâmina da barba.
Volta Gumerzindo! Por favor!
A vizinha mostrou-se relutante, mas agora afirma estar disposta a negar que tu a tenhas violado naquele dia.
O Sr. Ricardo do rés-do-chão garante que já não se lembra que foste tu que lhe furaste a chapa do carro com o saca-rolhas.
Até mesmo a Dona Violante, do 1º direito, afirma que não eras tu quem fazia chi-chi, diariamente, à porta dela.
Volta Gumerzindo!
Águas passadas não movem moinhos e o que lá vai, lá vai...
Esperamos-te, ansiosos, desejosos que tu regresses!
Serás recebido condignamente, como mereces!
Já comprámos revólveres, calibre 45 e durante todo este tempo praticámos tiro ao alvo. O paizinho jura que te coloca uma bala entre os olhos antes que consigas dizer ai!

Volta Gumerzindo! Estás perdoado!

(www.coiso.net)

OUTROS TEXTOS EM WWW.COISO.NET (Coiso do Artur Couto e Santos)

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