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São 43 cassetes da marca BASF do tipo Normal, cada uma com 60 minutos de duração, que se encontram acondicionadas numa caixa de sapatos depositada nas instalações da EMI-Valentim de Carvalho. E é aí que se encontra o legado musical de Variações, que ainda hoje está praticamente inédito. Mais do que uma raridade ou do que um documento, naquelas fitas está inscrita a urgência e vitalidade que faziam de Variações uma força da natureza e um músico sem par. Foi também daí que foram resgatados os doze inéditos que dão corpo ao projecto Humanos.

Já lá vão dez anos desde que Jaime Ribeiro, irmão de António Variações, entregou a David Ferreira da EMI-VC a caixa com as gravações que o "cantor colorido" (como lhe chama Manuela Azevedo) guardava em casa. Alguns desses temas, ou pedaços deles, já tinham vindo à superfície no álbum "Tu Aqui" de Lena d'Água (publicado em 1989 e recentemente reeditado em CD, inclui cinco inéditos de Variações) ou até como banda-sonora do documentário realizado, anos mais tarde, por Maria João Rocha para a RTP e que também foi re-exibido há pouco tempo, onde já se podia ouvir uma versão a capella de "Adeus que me vou embora".

Quer um quer o outro são, no entanto, insuficientes para demonstrar a capacidade de Variações - que não tinha educação musical - para fazer música a partir do nada. Os trechos que se encontram nas cassetes foram entretanto classificados e catalogados pelo jornalista Nuno Galopim e é lá que se descobre o modo de composição autodidacta de Variações. Sozinho em casa, interpreta canções, algumas das quais numa fase em que ainda nem letra tinham, acompanhado pelas suas palmas que marcam o ritmo ou mimando ele próprio o som dos arranjos. São também gravações em que o instrumental por vezes é unicamente constituído pela batida de uma caixa de ritmos rudimentar ou pelo som roufenho da banda formada pelos músicos que o acompanhavam - ou seja, já com guitarras e bateria, demonstrativos de uma urgência que chega a ser comovente. António Variações assinou contrato com a Valentim de Carvalho em 1977. Esteve quatro anos sem gravar, até Jaime Ribeiro, advogado de profissão, escrever uma carta à editora que pôs fim ao bloqueio e deu início à sua (curta) carreira. O primeiro single, "Estou Além" / "Povo que Lavas no Rio", foi publicado em 1982 e o segundo e último álbum, "Dar e Receber", chegaria aos escaparates no Verão de 1984. Julga-se que estas gravações sejam desse período, mas nos corredores da editora especula-se ainda sobre o paradeiro de um single de folclore que teria sido gravado antes disso, com uma orquestra dirigida pelo maestro Jorge Machado.

No documentário da RTP, David Ferreira, hoje director-geral da EMI, assume o embaraço da editora, que não sabia se havia de tratar Variações como artista de folclore, como novo Frei Hermano da Câmara ou como qualquer coisa de diferente. A última hipótese ganhou consistência e foram escalados produtores como Ricardo Camacho, Toli César Machado e Vítor Rua (GNR) ou os Heróis do Mar, que acabaram por concretizar os discos de Variações que hoje conhecemos. Os músicos que o acompanhavam em palco ou nos ensaios eram, no entanto, outros. Francis, fundador dos Xutos & Pontapés, faz ouvir a sua guitarra em alguns ensaios registados nas cassetes, onde também estão presente Carlos Barbosa (hoje produtor de espectáculos), o baterista Zé da Cadela ou Luís Carlos Amaro (que na altura fazia parte da banda A Jovem Guarda, sendo hoje designer gráfico).

No baú de Variações encontram-se ainda versões, mesmo que primitivas, dos temas que fazem parte do disco dos Humanos e daqueles que vieram a conhecer edição ainda António era vivo. Mas também existem canções que continuarão inéditas, como "Guerra nuclear" e "Reconciliação". Ou versões de canções que interpretava ao vivo, como um tema dos Kinks ou de "It's Now or Never", popularizado por Elvis Presley. Encontra-se também o registo completo de um espectáculo gravado no Rock Rendez-Vous em que o artista era singelamente apresentado como "António", e até de um outro concerto na discoteca Trumps. Estão lá também várias versões de "Toma o Comprimido que isso passa-te", o tema com que Variações se estreou nos programas de Júlio Isidro, em Fevereiro de 1981, juntamente com "Não me consumas", agora aproveitado para o disco dos Humanos. Há ainda uma versão de "...Que pena seres vigarista", um dos temas de "Anjo da Guarda", aqui com Variações acompanhado à guitarra portuguesa por Fontes Rocha, e várias experiências sobre a música de "Estou além" mas com outras letras, além de uma entrevista com cerca de 40 minutos para um programa de rádio apresentado por Rui Pêgo.

Tudo isso são hoje documentos que servem para conhecer melhor um cometa chamado António Variações, mas será indispensável editar alguns desses pedaços para que se possa perceber quão grande era o cantor português que, de forma muito clara, simples e lúcida, fez com que o espírito derrotasse a matéria. Até à noite de Santo António do ano de 1984. Faria hoje, precisamente, 60 anos.

ARTIGO DE MIGUEL FRANCISCO CADETE / PÚBLICO / 03-12-2004

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