Um breve retrato do momento intenso que transformou a cena musical portuguesa entre 1980 e 81
Em finais de 70 vivia-se a ressaca do 25 de Abril. Do canto livre, da redescoberta das raízes e de tudo o que a revolução movimentou num circuito antes dominado pela canção ligeira, o fado e o folclore feito para inglês ver. Pop? Rock? Era brincadeira para rapazes em tempo de liceu, que a chamada para incorporação na tropa e consequente embarque para África deixava esquecida para trás, como uma entre tantas outras recordações dos dias despreocupados antes do terror no capim. Não havia carreira que sobrevivesse ao regresso de músicos/soldados. E só na fuga para França ou outras paragens, a continuidade era possível. Mas nunca em domínios pop/rock. De facto, "todas as experiências anteriores tinham sido inconsequentes, sobretudo por causa da guerra colonial", defende António Manuel Ribeiro, dos UHF, numa ideia partilhada por Ricardo Camacho, que mais tarde formaria a Sétima Legião.
1980. À idade de fazer música, fumar uns cigarros e dar valentes escapadelas nocturnas chegava uma geração que passara demasiado jovem ao lado da revolução. Sem necessidade, portanto, de traduzir nas suas conversas e canções a carga política de quem viveu 74 e 75 a pulmão cheio. Sem dívidas a saldar com um passado que estava já longe ou lhes era alheio. Porque, como recorda Tozé Brito, que em 1980 era A&R nacional da PolyGram, depois da revolução "quem não estivesse na área da canção política não tinha para onde ir".
Em Julho desse ano, sem par na história, um disco catalizava entusiasmos. "Ar de Rock", apresentando o estreante Rui Veloso, acompanhado por uma desconhecida Banda Sonora, com uma canção que marcou a história: "Chico Fininho". E, de repente, tudo mudou.
"Não quero carregar os louros sozinho", diz Rui Veloso, que aponta nas importantes contribuições de Francisco Vasconcelos (então A&R nacional da Valentim de Carvalho), em David Ferreira (na altura a trabalhar na promoção da mesma editora), António Pinho (produtor do álbum "Ar de Rock") e Carlos Tê (o letrista). O que aconteceu em 1980 foi, a seu ver, "uma sucessão de eventos que conduziram a uma feliz conclusão". E justifica na aposta de Francisco Vasconcelos em editar rock cantado em português um dos trunfos maiores da explosão que então se viveu.
Ricardo Camacho faz, por seu lado, questão lembrar que, na altura, os UHF fizeram, pela primeira vez, uma canção pop em português: "uma canção simples com três minutos, mais nada"!
"Tudo aconteceu na hora certa. O Rui Veloso tinha um álbum preparado em inglês e estava a passá-lo para português quando nós batemos à porta da editora", recorda António Manuel Ribeiro, dos UHF que acrescenta outro dado importante numa tentativa de explicar o momento de "boom" que o então chamado "rock português" viveu há 20 anos: "houve uma greve de músicos, e o próprio Festival da Canção nem teve acompanhamento", recorda. "Artistas como um Paulo de Carvalho ou um Carlos Mendes não conseguiam gravar. Houve então uma abertura de espaço porque nem as editoras nem os estúdios podiam estar parados. Como havia propostas interessantes e nem nós nem o Rui éramos sindicalizados, avançámos. E a Valentim de Carvalho teve muito mérito em todo este processo, já que a PolyGram esperou um ano para ir procurar os Taxi", relata.
A adesão da rádio, imprensa e televisão foi igualmente determinante para a sustentação do fenómeno emergente. "Em 1980 e 81 o selo `rock português punha discos a rodar na rádio", sublinha o vocalista dos UHF.
"Foi um período de intensa militância", recorda David Ferreira, que defende a tese da confluência geracional entre quem fazia música, quem a editava e ouvia. "Eu tinha 26 anos, e o Chico (Francisco vasconcelos) tinha 24", e isso é determinante". António Manuel Ribeiro acrescenta que o facto de haver personagens com a mesma idade neste universo "facilitava a comunicação" e aponta que tanto David Ferreira como Francisco Vasconcelos "tinham o bichinho da música" e que em todo o processo a figura de Tozé Brito "é também importante".
Em finais de 70 as movimentações nas caves dos acontecimentos com direito a rádio e televisão tinham-se intensificado. Os Tantra enchiam o Coliseu dos Recreios em 1977, no mesmo ano em que os Arte & Ofício faziam a primeira parte dos Can num Pavilhão dos Desportos à pinha. Alimentado a ideias divulgadas por António Sérgio nas noites da Renascença, o movimento "punk" português surgia discreto com direito a registo em disco num single dos Aqui d'El Rock. Os Xutos nasciam sem pressa. Os Faíscas terminavam uma curta existência, das suas cinzas emergir o núcleo do Corpo Diplomático.
Este grupo, no qual militavam Pedro Ayres Magalhães, Paulo Pedro Gonçalves e Carlos Maria Trindade, é o responsável pela introdução no vocabulário pop/rock português do conceito "música moderna", de resto título do álbum de estreia (e único na carreira da banda) editado em 1979 e com morte ditada pela recusa de Luís Filipe Barros, o "Berros", como então lhe chamavam, em passar o álbum no "Rock em Stock" na Rádio Comercial. "Ainda passei uma faixa ou outra, mas assim que me mostraram o disco disse que não se ouvia nada", recorda hoje Luís Filipe Barros. E acrescenta: "Quando os conheci, num cocktail de apresentação da Stiff, achei-os muito cheios de peneiras". António Sérgio, produtor do álbum do Corpo Diplomático, recorda também essa festa de lançamento da Stiff, onde o grupo actuou, como um momento desastroso. "O vocalista perdeu a cabeça e, no meio das piruetas, desligou os instrumentos todos... Os outros ficaram furiosos". Sobre o "não" do "Berros", António Sérgio reconhece o peso que essa decisão teve na carreira do grupo: "O Rock em Stock era quem levava os discos a um mercado maior".
Em 1979, ano do "caso" Corpo Diplomático, já os UHF corriam o país. Já Rui Veloso entrara em contacto com a Velentim de Carvalho. Já os Taxi surgiam, da morte dos Pesquisa. Já os Xutos tocavam ao vivo (com primeiro e histórico concerto nos Alunos de Apolo a 13 de Janeiro). Já Vítor Rua, Alexandre Soares e Tóli César Machado ensaiavam, num núcleo do qual um ano depois nasceriam os GNR. Os seis primeiros meses de 1980 poucas novidades acrescentam a este cenário ainda feito de penumbras e sussurros. Os Street Kids formam-se em Cascais. No Porto nascem os Trabalhadores do Comércio. Em Lisboa surge a Salada de Frutas.
Em grande forma, os UHF (de Almada) correm os palcos do país. Com um single editado em 1979 pela pequena independente Metro-Som ("O Jorge Morreu"), com primeiras partes em concertos dos Dr. Feelgood, Ramones e Elvis Costello, com muitos mais espectáculos em nome individual por todo o lado durante todo o Verão, solidificavam as bases. Chamavam atenção para o nome. E preparavam-se para o salto de divisão, ao assinar pela Valentim de Carvalho. Tudo parecia apontar para que, nos UHF, surgisse o primeiro caso de sucesso de um grupo de rock cantado em português. Inesperadamente, do Porto, chegou uma surpresa.
Com carreira inicialmente pensada para seguir um rumo em inglês, Rui Veloso e, sobretudo, Carlos Tê, foram desafiados pela mesma editora a fazer um disco em português. Opção que se viria a mostrar fundamental na génese de todo o fenómeno. "O Tê escreveu em português muito relutantemente, e eu musiquei aquilo que nunca tinha feito", lembra o então jovem estreante que deixa claro que o fenómeno que aconteceu no Verão de 1980 "não foi uma coisa pré-concebida nem planeada". Com "um timing certo" para a equipa que trabalhou o disco e conquistou um lugar na primeira divisão das atenções. Rui Veloso conclui: "dá-me um certo gozo termos sido os primeiros a gravar na mesa de 24 pistas no estúdio RPE", num trabalho fulminante de 70 horas nas quais foram feitas gravações e misturas...
António Sérgio, já rodado na música quando Rui Veloso edita "Ar de Rock" não escondeu a surpresa com que, também do lado de quem divulga, o álbum foi recebido. "Há uma franca genialidade naquele álbum de estreia", explica, compreendendo na força do disco um dos motores do fenómeno que desencadeou.
David Ferreira, na altura responsável pela promoção da Valentim de Carvalho, recorda a carreira fulminante de Rui Veloso: "ele explode ao ponto de ser convidado para fazer a primeira parte dos Police antes do Natal".
Pouco depois da edição bem sucedida do álbum de estreia de Rui Veloso, o segundo single dos UHF, "Cavalos de Corrida", sublinha e reforça o momento de franca adesão do público jovem português ao rock cantado na sua língua. E ultrapassa em larga expressão os resultados do single "O Jorge Morreu", editando no ano anterior. "Não havia estrutura de promoção na Metro-Som", recorda António Manuel Ribeiro que, com os colegas, fez em mão própria a distribuição do single na rádio. "Olhavam para nós como bichos, mas esse desbravar de terreno foi importante", lembra.
Em 1980 entregam pela segunda vez uma maqueta à Valentim de Carvalho na qual estava já a canção "Cavalos de Corrida" que, recorda António Manuel Ribeiro, "era precisamente a mesma maquete que tínhamos entregue em 1979". Com outra predisposição para gravar e lançar rock cantado em português, o mercado recebe com entusiasmo a música dos UHF e de grupos que, entretanto, começam a brotar do anonimato. "Havia uma lacuna de música nova, e as pessoas estavam à espera de uma coisa nova. Que apareceu".
Aos "Cavalos de Corrida" o grupo faz suceder "Rua do Carmo" e "À Flor da Pele", álbum de estreia no qual o grupo vê reconhecido o estatuto de popularidade entretanto conquistado. "Mas o sucesso correu mais depressa que nós", explica o homem do leme dos UHF. "Tivémos de montar uma empresa de som. Não havia técnicos nem managers, pelo que tivémos de trabalhar rapidamente. E aprendemos muito nos bastidores das primeiras partes das bandas estrangeiras com que tínhamos tocado no ano anterior".
Já com quase dois anos de vida, os Xutos & Pontapés continuam sem gravar, e o sucesso entretanto conquistado por Rui Veloso e pelos UHF não os incomoda. "Éramos uma banda mais punk e não procurávamos ainda editora", explica Zé Pedro. "Acima de tudo estávamos empenhados em andar para a frente e verificámos que surgia uma predisposição para ouvir coisas novas, em português". Os Xutos só se estreariam em finais de 81, com "Sémen", editado pela Rotação. "Eles souberam esperar", vinca António Sérgio. "Mesmo mais tarde, quando o álbum saíu, em 1982, não tocou na rádio, que pôs uma pedra em cima dos Xutos". E o grupo insistiu no palco. E sobreviveu.
Entre os finais de 1980 e a Primavera de 1981 surgem no mercado os singles de estreia dos Salada de Frutas, dos Trabalhadores do Comércio, dos Street Kids, dos GNR. Todos com considerável êxito. O fenómeno seguinte chegaria em Maio, com o álbum de apresentação dos Taxi, quarteto portuense nascido dos Pesquisa e que, tal como Rui Veloso, são desafiados pela respectiva editora (a PolyGram) a fazer canções em português.
"Lembro-me de ter ido ao Colégio Alemão, no Porto, ouvir os Taxi", recorda Tozé Brito. "Cantavam originais, mas em inglês. Achei-os muito bons e propus-lhes gravar imediatamente, mas em português. Foi a única condição. E, em vez de lhes propôr um single, que era a regra, falei-lhes num álbum. O João acabou por se revelar um dos letristas mais inspirados daquela geração".
Rui Taborda, baixista do grupo, frisa que "a princípio a ideia dos Taxi não era a de fazer carreira em Portugal", estando decididos a ir de malas e bagagens para fora, o que acabou por não se concretizar. "Não havia referências rock em português a não ser o Rui Veloso e, depois decidimos ficar por cá". Sem acreditar em razões maiores para a justificação do momento que Portugal viveu, Rui Taborda refere, mesmo assim, que "havia entre nós a redescoberta de um certo orgulho em nós mesmos" e que, entre outras coisas, "passámos a ouvir rock feito em português". Sobre a carreira de sucesso de "Chiclete", confessa não o ter surpreendido que a canção tivesse sido um êxito: "Só não esperava aquela amplitude, pelo que nem queríamos acreditar. Não era habitual haver vendas naquela ordem entre nós". Convém aqui recordar que "Taxi" foi o primeiro disco de ouro do rock português, com vendas acima dos 35 mil exemplares, feito que o "Ar de Rock" de Rui Veloso, apesar de editado antes, só mais tarde conseguiu atingir.
"Tudo vendia naquela altura", defende Tozé Brito. E, colocado o cenário de sucesso, assinaturas, apostas e edições multiplicaram-se. Surgiram grupos novos todas a semanas. Uns a Leste do alvo. Outros com sucesso pontual, como os Iodo, CTT ou o bizarro Grupo de Baile e o inesquecível "Patchouly", um dos casos do ano de 1981.
A vida deste single está associada à primeira grande manobra de "marketing" do rock português: a questão dos "piis", com os quais a Valentim de Carvalho tapava a palavra "pentelho" numa versão "censurada" da canção, colocada no mercado e nas rádios em simultâneo com o original. "O Chico mostra o disco, e pensamos `e agora?", relata David Ferreira. "O Chico Fininho tinha já sido censurado numa estação de rádio por causa da `merda na algibeira, e pentelho é mais explícito", justifica, apresentando assim os motivos que o levaram a inventar as duas versões, com e sem "pii". Sendo que a não censurada vendeu muito mais (quase 100 mil) que a versão pudica... "Os piis, além de nos contornarem o problema, funcionavam um pouco como aquelas tiras pretas com que se tapava, na imprensa da altura, fotos mais pornográficas. E, em vez de escondermos, estávamos a chamar a atenção, num exemplo de como se podia usar a censura em nosso favor", explica, referindo ainda que o grupo, descoberto por Ricardo Camacho, "era mesmo um grupo de baile do Seixal, e a imagem foi por nós fabricada com precedentes nos Blood Sweat & Tears". A vida do Grupo de Baile foi curta, já que a editora não editou aquela que deveria ser a canção sucessora de "Patchouly", e que teria por título "O Pirilau do Rock". "Não tinha graça nehuma", defende David Ferreira.
Entretanto, dado o excesso de propostas e edições, a ressaca começa a desenhar-se. "As rádios, que antes rodavam tudo o que tivesse o rótulo `rock português, deixam de passar os discos e começam a fazer uma triagem", conta António Manuel Ribeiro. "É o primeiro revés, já que aparecem muitos discos pelos quais a rádio não se interessa. E há concertos que são uma fraude".
Depois de um 1981 de euforia, com o "Robot" da Salada de Frutas, "Foram Cardos Foram Prosas" de Manuela Moura Guedes, "Chamem a Polícia" dos Trabalhadores do Comércio e os dois primeiros singles dos GNR ("Portugal na CEE" e "Sê Um GNR") a vender bem, a ressaca mostrou-se implacável. "1982 foi o ano dos flops", recorda David Ferreira: "O segundo do Rui Veloso quase não vendeu, assim como o primeiro álbum dos GNR, o álbum da Lena d'Água e o JTX, que na altura surgiu. A única excepção foi o máxi do António Variações".
"Viveu-se um fenómeno semelhante ao que hoje temos nas boy bands. Tudo grava e o mercado não comporta a oferta. Qualquer tipo inventava um grupo rock, chegava a uma editora e gravava", lembra António Manuel Ribeiro.
A ressaca decretaria vítimas em nomes como os Street Kids, os Taxi ou os Jáfumega. Sobre estes últimos, que Tozé Brito lembra como um grupo "genial", a voragem louca, não foi meiga. "O que não vendia ficava para trás e eles, que estavam mais avançados e não entregues a esquemas comerciais, pagaram. Enquanto os Taxi vendem 50 mil e os Heróis do Mar, com o `Amor disparam para esses números, eles ficavam pelos quatro ou cinco mil... E na altura até dez mil discos não interessava. E isto matou muitos outros projectos. O que não impede que aí tenha havido algumas escolas incríveis".
Com Rui Veloso, o primeiro "motor" do fenómeno a cantar "não quero ser estrela do rock'n'roll", a apresentar um álbum de título "Fora de Moda", o capítulo encerrava. Para dar entrada a duas novas gerações. A geração pop de meados de 80, com figuras como António Variações, Heróis do Mar, Rádio Macau, Ban e os sobreviventes e transformados GNR na proa dos acontecimentos. E uma geração urbana atenta a raízes antigas, comandada pelos Trovante, acompanhados por uma legião de bandas de recolha das quais poucas sobreviveram aos respectivos 15 minutos de fama.
Nuno Galopim / DN
ARTIGO PUBLICADO NO DN MAIS