ZÉ PEDRO
Mais de duas décadas depois de os Xutos & Pontapés se terem feito à estrada, Zé Pedro sente que ainda é muito cedo para se falar de reforma. Afinal o rock’n’roll não tem idade.
A história do rock’n’roll em Portugal, nunca poderia ser feita sem os Xutos & Pontapés. Sem a sua energia única, sem a força das suas guitarras, que electrizaram gerações sucessivas de portugueses. Mas, se divertiram os portugueses, os Xutos também ficaram marcados pela festa. Zé Pedro, uma das faces mais visíveis do grupo, passou parte da sua vida a dançar com o rock. Sentiu as mudança de ritmo e ficou com muitas memórias tatuadas na alma. Diz que é a atitude que marca a passagem de um músico pelas artérias do som urbano. Pela frente pode encontrar semáforos de várias cores e saber parar, no momento certo. Foi o que fez quando o corpo pediu desforra pelos exageros. À volta de um mar de chá, conversámos sobre o descanso dos guerreiros do rock. E sobre a forma de se afiarem as consciências para outros tangos de vida à volta de uma guitarra eléctrica.
O tempo passa e as rugas vão deixando as suas marcas. Hoje sentes a marcha do tempo?
É difícil senti-lo com datas e marcações. Há 23 anos que os Xutos tocam juntos, mas não sentimos isso. As coisas aconteceram, lembramo-nos de algumas datas, se rebuscarmos um pouco mais descobrimos outras. O espírito está todo à volta. Daí que talvez tenha desaparecido a lógica de calendário. Claro que também sentimos o frio e o calor. O rock’n’roll é motivante para o corpo, mais do que qualquer ginásio. Porque existe um espírito e, no caso dos Xutos, isso está muito presente. Essa adrenalina criada mantém o corpo a reagir perante essas coisas. Afinal, veres um espectáculo de rock’n’roll sem veres o Mick Jagger a dar aquelas correrias, não é espectáculo.
Isso é um dos mistérios do rock: como é que o Mick Jagger continua a correr, indiferente ao tempo?
Tudo aquilo faz parte de um movimento e de um estado de espírito que faz com que as coisas aconteçam. O gosto do movimento é tão importante como o estar lá. São coisas que se completam. O rock’n’roll tem a ver com a dança, com o abanar o corpo. É uma coisa corporal. Há bandas que só tocam e não se mexem e têm shows excelentes, mas até no caso dos U2, que é uma grande banda, o The Edge que era um elemento perfeitamente pacífico, desde há umas tournées que se começou a mexer em cima do palco.
No rock dá-se o corpo ao manifesto?
É isso. Concordo. É de tal maneira intrínseco, que se mistura tudo. Sai da alma, do corpo, dos dedos, da atitude. É movimento.
Há uma frase que se cita muito (too young to die, too old to rock’n’roll). Faz sentido?
O Ian Anderson chamou isso a um álbum dos Jethro Tull e suponho que não fez isso porque se sentia velho. Eu vi-o no Pavilhão Atlântico e ele está completamente renovado. Não seria por aí que ele queria utilizar essa frase. Mas eu suponho que o rock’n’roll não tem idade. O Chuck Berry e o Jerry Lee Lewis continuam a tocar. Mesmo hoje, os shows mais rentáveis de estádios são os dos Rolling Stones e dos U2.
A idade faz dos rockers verdadeiros entertainers?
Há uns que conseguem passar para uma carreira de entertainer, que juntam boas canções e as cantam, enquanto outros desaparecem nas cinzas. Alguns descobre-se que ainda estão vivos e a cantar no Casino de Las Vegas. Na sua sala II ou mesmo em Atlantic City, em saldo. E talvez brevemente em Macau…
Como é que um músico, habituado a pular em cima do palco, sente o envelhecimento do corpo?
Hoje é totalmente diferente, inclusivé na relação com os concertos, mesmo a que tinha no ano passado. Tive de deixar de beber e de fazer uma data de coisas. Agora tudo é mais doseado. Mas basta saber os pontos altos e baixos de um concerto. Doseio os movimentos e as correrias. Agora sou mais corredor de maratona do que de 100 metros. Quando era jovem passava o espectáculo todo a pular, todo contente, a pensar que era o último concerto que ia dar na vida.
Como é que te vemos a beber chá?
Primeiro porque fui obrigado a isso e porque agora porque descobri o verdadeiro prazer do chá. Se não podes lutar contra ele, aproveita-o bem. E acabamos por descobrir que os ingleses ainda têm razão em algumas coisas.
O corpo é um sacana para nós?
Não. O meu corpo aguentou muito bem, até mais do que estava à espera. Ele bem dizia: Zé, estás a exagerar. Mas eu não ouvia o meu corpo a queixar-se. Pensava que ele pedia mais cerveja e eu dava-lhe mais cerveja. Continuava a queixar-se e eu dava-lhe whisky. Mas acho que aproveitei muito bem toda a minha época de exagero. Não estou nada arrependido, muito pelo contrário. Se houve alguém que aproveitou muito bem essa época de exagero fui eu. E vivi-a muito bem. E claro, deu-se a quebra. Depois a opção foi facílima: tomei-a dentro da cabeça, no hospital. Estive a duas horas de morrer, mas não entrei em pânico, quando o médico me disse que aquilo estava muito mal, embora pensasse que aquilo era uma ressaca e nessa altura já tinha perdido três litros de sangue. Só me restavam dois e estava com uma veia aberta. E quando ele me disse que eu, se calhar, nunca mais ia poder beber na vida, fiquei com a noção de que já sabia. Hoje, passados mais de nove meses de isso ter acontecido, não me custa absolutamente nada fazer a vida que faço e continuar a tocar dá-me um gozo redobrado, porque se calhar até vejo as coisas de outra maneira. Não me preocupa nada os outros estarem a beber à minha frente e eu não o fazer. E descobri o verdadeiro prazer do chá das cinco, que é uma meta importante na vida de um homem. Aos 45 anos pode-se descobrir um mundo novo…
Costumavas vir junto dos fãs depois dos concertos. Isso mantem-se?
Nem sempre estou tão activo e disponível para o fazer. Mas tento estar junto das pessoas. Gosto de estar no meio da cidade, ir ao cinema, aos concertos, ao supermercado. Acho que a cena da loucura não tem a ver com a quantidade de álcool ou de drogas que ingeres. Tem a ver com o estado de espírito. Esse estado de espírito posso tê-lo calmamente como um actor de cinema, porque já sei como é uma bezana.
Nunca pensaste em ser actor?
Ao fim de uns anos somos sempre um bocado de actores. Por mais verdadeiro que possa ser a personagem. O bom actor é o que encarna mesmo a personagem. Eu acho que encarno bastantes personagens, através de toda a cultura rock que tenho. Há sempre um actor dentro de mim. Mas não se se o consigo transpor para um filme. Fui convidado pelo Joaquim Leitão para entrar no ‘Inferno’, e sai-me muito mal logo nas provas. Como apresentador de televisão também fui um desastre, embora o programa tivesse a sua graça, o Vivó Video. Fui despedido e com razão.
Costumas ver televisão?
Vejo algumas coisas. Só o que me agrada. A última telenovela que vi foi «As Mulheres de Areia». Agora até me faz mal ao coração vê-las. Vejo bastantes filmes. Gosto de ver documentários. E de video-clips. De ver reportagens de fundo e de entrevistas com as pessoas de que eu gosto. Adoro ver os telejornais, sou viciado em notícias.
Quando olhas para trás, o que sentes que se passou com a música portuguesa?
Acho que os Xutos, os Pop Dell’Arte, os Heróis do Mar, umas mais conhecidas, outras menos, todas acabaram por marcar a música portuguesa. O João Peste e a Ama Romanta foram muito importantes, havia uma sala que acompanhava as bandas, que era o Rock Rendez-Vous, porque as pessoas iam vê-las ao vivo e assim não eram um sub-produto televisivo. A música portuguesa, hoje, está num impasse. Não tens um programa de televisão onde a música apareça, nomeadamente as bandas novas. A rádio está quase no zero em termos de passagem de música portuguesa e as play-lists rebentaram com tudo.
Os responsáveis parecem não se aperceber do que se passa…
São pessoas que estão à secretária, que não vão ao terreno. Ninguém vai ver as novas bandas ao vivo. Acho que o que é importante é que as bandas deixem de estar penduradas nas editoras, de considerar que o cantar em inglês é que lhes dará passagem lá para fora. O que é uma grande mentira. Uma banda tem de fazer por ela e foi isso que sucedeu há uns anos. Na altura havia atitude. E elas tinham, felizmente, o João Peste a editá-las. E havia muita gente, como tu e eu, que íamos ver os concertos uns dos outros, estávamos atentos aos concertos. Bastava arranjar um palco e tentava-se arranjar uma aparelhagem. No largo de Belas Artes. Nas sociedades recreativas. Havia o apoio do António Sérgio na rádio. O Luis Filipe Barros passava música portuguesa coladinha às estrangeiras que se estavam a ouvir. Algo que hoje não há. Há bandas como os Da Weasel que estarão a chegar ao topo de carreira, ou os Yellow W Van. Continuamos a ter uns Blind Zero. O que parece é que não há uma união. As bandas estão um bocadinho isoladas. Não temos um programa de rádio onde se passe esse tipo de música. Não há um jornal, porque o ‘Blitz’, hoje, é um jornal totalmente díspar onde se diz mal e destrói as bandas portuguesas. Numa altura em que o panorama não é tão vasto para se andarem a destruir bandas. Vale mais não escreverem. Porque é que se vai cascar nos Yellow W Van? Para eles é muito mais fácil dizer bem do DJ XPTO que vem lá de fora, que é a última descoberta do século e que nós nunca mais vamos ouvir a não ser que volte aqui.
O que é que mudou em Portugal nestes anos todos? Para melhor e para pior?
Para melhor vejo a entrada na CEE. Continuo com muita esperança que vá resultar bem. Alarga-te os teus conhecimentos, quebras a paranóia de Aljubarrota, de cada vez que queríamos sair de Portugal tinha-se de ir para França sem passar por Espanha. Para pior existem estes jogos de interesses muito maus. O que mais me chateia em Portugal é os tipos das secretárias, que decidem pelo povo sobre o que o povo quer. Isso leva a que os adolescentes estejam cada vez mais desinteressados de tudo. Querem é tirar um curso e arranjar um emprego. Antigamente chateavam-me os programas infantis na televisão que tratavam as crianças como anormais. Agora os que há para adolescentes tratam-nos como atrasados mentais. Os apresentadores são imbecis e tratam toda a gente como imbecil. Está-se na cadeira com o comando da tv e não nos conseguimos mexer, tal a imbecilidade. Depois lá nos levantamos e vamos fazer um chá e uma torrada.
Fernando Sobral / Diário Económico