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«Gingando pela rua ao som do Lou Reed/ Sempre na sua, sempre cheio de speed/ Segue o seu caminho com a merda na algibeira/ O Chico Fininho, freak da Cantareira...» A letra de Carlos Tê, interpretada por um tal Rui Veloso, começava a passar nas rádios nacionais e a entrar no imaginário de todos os portugueses. Estava-se no ano de 1980, num país ainda a viver um pouco o rescaldo da «Revolução dos Cravos». "Ar de Rock", aquele que é considerado por muitos como o primeiro álbum de rock português, tinha acabado de ser lançado, marcando o arranque da carreira de um pequeno grupo de jovens portuenses, amantes de blues e de rock'n'roll, liderados por Rui Manuel Gaudêncio Veloso. (...)

Rui e Tê conheceram-se através de um amigo comum, que os apresentou, nos tempos em que se costumavam reunir em casa de uns e de outros para ouvir música. «Eram pequenas tribos que se formavam em torno da música», esclarece Tê. As letras que escrevia começaram a ser aproveitadas por Rui para as suas músicas, conforme este último afirma: «Juntámo-nos fazendo músicas à base dos blues, que era um género fácil para improvisar. Aquilo tinha por base apenas uns três acordes de guitarra. Ouvíamos muitas outras coisas, como King Crimson, Gentle Giant, mas essas já não davam para improvisar.»

Criar músicas em português era algo que nem lhes passava pela cabeça, até porque as suas referências musicais estavam bem longe daqui. «Desconfio que, se tivéssemos nascido no Brasil, teríamos começado logo por fazer músicas em português, porque todo o ambiente envolvente teria sido outro. Mas, por cá, o meio musical era de uma pobreza confrangedora», vai contando Rui. «Nós começámos a fazer coisas em 76, logo a seguir ao 25 de Abril. Na altura ainda não havia nada, a não ser a canção revolucionária, em contraponto o fado - que era uma coisa conotada com o regime anterior - e depois o Festival da Canção. Não existia nenhum circuito de espectáculos, e os grupos de então acabavam sempre a tocar em bailes de finalistas e em liceus.»

Quanto às influências que vinham de fora, sempre estiveram ambos claramente mais perto das bandas anglo-saxónicas, em detrimento de outros ventos que então se faziam sentir. «Na altura, havia aquela moda da música francesa revolucionária, mas nem eu nem o Tê estávamos para aí virados. Nós sempre detestámos a música francesa», diz Rui. «Era o predomínio do texto sobre o ritmo, sobre a harmonia», explica Tê. «A música servia de mero suporte para os textos poéticos», complementa Rui, citando nomes como Léo Ferré e Jacques Brel, «eram grandes testamentos, e eu sempre gostei mais do oposto, de quando o texto serve de suporte à música.»

Carlos Tê nem sequer dominava o francês e achava que, para o género de música que gostavam, as letras teriam de ser necessariamente em inglês «Havia uma única coisa em português, que era o 'Chico Fininho', que tinha sido feita para aí três anos antes, em 77. Foi uma letra que fiz a pensar na impossibilidade de se cantar em português... Ou seja, era possível, mas soava mal. O resultado era o que eu definia como uma azeitice. O 'Chico Fininho' começou por ser apenas um momento de humor», recorda Tê. «Olha-me esta foleirice», ironiza Rui. «Mas acabou por ter exactamente um efeito contrário. As pessoas (da EMI-Valentim de Carvalho) ouviram e disseram: 'Arranjem mais dez temas em português.' (risos) Depois pôs-se a questão de fazer isso ou não. Caso não o fizéssemos não haveria disco para ninguém.»

Como é óbvio, optaram pela segunda hipótese, o que significou deixar de lado praticamente tudo o que tinham feito até aí e criar temas em português. Mas o resultado acabou por superar todas as expectativas: "Ar de Rock" tornou-se num inesperado sucesso, chegando a disco de ouro. E Rui Veloso, um jovem franzino de bigode e com uma grande dose de introversão e timidez, saiu subitamente do anonimato, tornando-se numa das figuras centrais do «boom» do rock português. «Na altura não dei conta de nada, andava ali simplesmente ao sabor das coisas que me iam acontecendo. Tinha 23 anos, tinha saído do Porto e vindo para Lisboa. Andei muitos anos sem saber sequer se seis meses depois já não teria largado a música e estaria a fazer outra coisa, se não teria já voltado para o Porto. Não tive muito a noção do que estava a acontecer. Foi uma fase inicial em que toda a gente estava ainda a aprender. Nós fomos completamente cobaias», lembra Rui.

As letras de Tê transportavam uma série de expressões de uso popular para um contexto que procurava acentuar o seu lado mais «kitsch», como em «Chico Fininho», em «Um Café e Um Bagaço», ou nas canções criadas para a banda sonora do filme "Crónica dos Bons Malandros", de Fernando Lopes. Mas, ao interpretá-las, Rui Veloso nem sempre conseguia criar o afastamento necessário, e as músicas acabavam muitas vezes por ser tomadas quase por autobiográficas e por lhe ficarem «coladas à pele», como aconteceu no caso de «Chico Fininho». Foi o preço que teve de pagar por ter sido ele a subir aos palcos para interpretar os temas juntamente com o baixista Zé Nabo e o baterista Ramon Galarza, enquanto o verdadeiro autor das letras permanecia (e continuou a permanecer) «oculto» nos bastidores. «Isso é uma coisa engraçada», diz Rui. «O João Monge, por exemplo, também é um bocado como o Tê, fica na retaguarda. Diz que lhe dá imenso jeito poder ir para o meio do público nos concertos da Ala dos Namorados e ficar a ouvir os comentários do pessoal sem ser reconhecido. O que é bestial. Eu sofri um bocado com isso... Uma pessoa não tem preparação nenhuma para ser conhecido, e é uma chatice. Agora já estou habituado, mas penei durante muitos anos.»

Duas décadas e oito álbuns depois de "Ar de Rock", Rui Veloso e Carlos Tê mostram-se dispostos a continuar a colaboração, até porque «em equipa que vence não se mexe». Mas, apesar disso, as edições tendem a ser mais espaçadas, porque a vida do rock não mata mas mói e a disponibilidade para compor começa a já não ser a mesma: «Antigamente colaborávamos na base da irresponsabilidade. Não tínhamos filhos, éramos jovens e preocupávamo-nos apenas em desbundar e em tocar numa boa. Hoje as coisas são diferentes. Quando vamos para o estúdio levamos já uma série de coisas apontadas, porque temos menos tempo a perder.» Depois procuram também diversificar a sua actividade: Tê tem-se dedicado a produzir os trabalhos de diversas bandas e editou recentemente um romance, enquanto Rui planeia aproveitar o seu estúdio para criar uma pequena editora e promover novos projectos musicais.

Quanto ao actual panorama musical português, Rui Veloso mostra-se algo céptico, porque muita coisa mudou, mas nem tudo para melhor: «Um dia destes um gajo ainda é atropelado por um McDonalds em construção. Estão criadas todas as condições para que daqui a três ou quatro gerações isto não tenha identidade nenhuma...»

ALEXANDRE COSTA

ARTIGO PUBLICADO EM 28/10/2000 NO JORNAL EXPRESSO

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