Pronto. Viriato, Camões, futebol, sardinhas assadas, fado e vinho tinto já não chegam para edificar o arquétipo português. A partir de agora, não é bom português quem não perceba um pouco de rock «português», quem desconheça o Rui Veloso e o Chico Fininho, a Adelaide Ferreira e a Baby Suicida, os Táxi e Chiclete; quem não entoe pelas esquinas da Rua do Carmo o Chamem a Polícia, o Robot, o Malta à Porta; quem não sustente que, Se cá Nevasse isto era Portugal na CEE; quem não use e abuse de Um Café e Um Bagaço e do Patchouly com os respectivos «pis» decorativos.
Está dito: o rock «português» existe. Está dito: o rock «português» não existe. Está dito: o rock «português», é um grande negócio.
Antes de Rui Veloso era um mau negócio. O rock. «Português». Hoje há discos a pingar ouro. Há editoras em fúria, estúdios muito ocupados, músicos atarefados, discos e concertos ao desbarato. Há interesses. Há intrigas de bastidores. Há páginas e páginas de jornais abertas ao fenómeno.
Há pouco mais de dois anos era o silêncio. De repente um rapaz do Porto canta um rock zito ligeirinho, em português, bem promocionado e bem digerido, e aí está: o rock «português».
Em Fevereiro de 1980, quase dois anos depois de os Tantra terem sido a primeira portuguesa de rock a encher o Coliseu dos Recreios de Lisboa, Lena d'Agua, então dissidente dos Beatnicks, apresentava-me num bar da capital o ilustre desconhecido Rui Veloso. Nessa noite ouviria, pela primeira vez, Chico Fininho, ao vivo, cantado à guitarra. No bolso do cantor estava a maqueta do êxito: as letras eram simples e musicais, falavam do quotidiano e de putos da rua, usavam calão «freakalhote» e saltavam para o ouvido. A música era o trivial blues-rock, a balada bonitinha, a canção ligeira electrizante. O jovem venceu e vendeu com «Ar (apenas) de Rock». Foi o bastante para ser armado cavaleiro número um da ordem do rock «português».
Cerca de meio ano antes do primeiro encontro com o Rui, finalizava (ou melhor, julgava que finalizava) este livro que vocês têm nas mãos. Finalizava-o depois de muitos meses de investigação, depois de vários anos a ouvir (bom) rock feito em Portugal. Finalizava-o a sentir, também, a frustração dos músicos de rock portugueses de não saírem de casulos imaginários, de se verem condenados à sobrevivência em bailaricos ou festinhas de atrasados mentais.
Quis o destino que a editora que inicialmente iria publicar este livro abrisse falência, já com a obra no prelo. Ficaram, assim, estas páginas fechadas na gaveta até nova oportunidade. Que veio dois anos depois. Que veio em época de euforia, voados cento e oitenta graus no rock de expressão portuguesa.
É inegável que o rock «português» se tornou um fenómeno a partir dos finais de 1970. É cedo ainda para o analisar e é cedo ainda para o perspectivar. De qualquer modo, este livro, com as suas limitações e omissões, pretende exprimir a certeza de que o rock «português» tem vinte e cinco anos de idade; de que o que está para trás é válido, é uma aventura, é quase um romance; de que tempos houve e tempos há (apenas para alguns poucos músicos) que o rock era e é, antes de mais nada, uma cultura, uma nova forma de partir para a música e para o mundo que nos rodeia. Disseram-no, muitas vezes com um sorriso à boca do palco, frente a adolescentes envergonhados e a papás vigilantes, os Sheiks, o Quinteto Académico, os Gatos Negros, o Zeca do Rock, os Conchas, os Demónios Negros, Daniel Bacelar, Fernando Conde, os Ekos, José Cid e o 1111, o Pop Five Music Incorporated, o Psico, o Objectivo, os Beatnicks, o Very Nice, o Nirvana, o Pentágono, o Kama-Sutra e muitos outros saudosos músicos e grupos de rock. Reafirmaram-no, mais tarde, nos tempos da evolução e das novas técnicas, os Petrus Castrus, os Tantra, o Perspectiva, os Go Graal Blues Band, o Arte & Ofício, os Faíscas, o Aqui d'El Rock, o UHF.
E, no entanto, hoje fala-se por aí em «inventores» do rock «português», como também se fala de rock que «não é rock português» como se fosse uma vergonha fazer rock em português...
Muita coisa mudou por cá, mas não tanto ao nível do conhecimento e da originalidade musical. Portugal não constava dos ficheiros das grandes multinacionais do disco. Hoje é roteiro apetecido para edições de toda a espécie, que vendem porque há poder de compra, porque há capitalistas empresários, promotores, produtores, estúdios, técnicos, publicitários. Porque há mais jornais, porque se ouve mais rádio, porque a publicidade deixou de ter medo de fantasmas, porque a sociedade de consumo se vai edificando. Em pilares de barro.
Salvo raras e honrosas excepções, os grupos de rock portugueses foram envolvidos na teia, massificaram e banalizaram o conteúdo da sua mensagem. Apuraram-se tecnicamente, mas esqueceram a rebeldia, a espontaneidade, os happenings. As condições para se ser músico de rock em Portugal estão aí, quase todas, finalmente, mas falta-nos agora meter o pauzinho na engrenagem que já é o rock «português».
Apesar de tudo, ainda bem que há UHFs que rescindem contratos e que dizem «não», que há Xutos e Pontapés que se mantêm três anos sem gravar porque não estão à venda; que há Frodos que recusam receitas e rejeitam o gratuito, o fácil e o comercial; que ha GNRs doidos; que há Roxigénios que não aceitam cantar em português, quando cantar em português virou «moda»; que há Jafumegas não alinhados e Trabalhadores sem Comércio; que já existem duas ou três etiquetas independentes; que estão no ar programas de rádio «piratas»; que há e funciona uma associação de meia dúzia de grupos que luta por interesses comuns e pela defesa da sua dignidade. O resto é conversa de café...
E, já agora, então, antes que lhes conte esta história de quarto de século, de grandezas e misérias, dos Babies aos Heróis do Mar, aqui fica, dos Táxi, a melhor conclusão a este prólogo - Chiclete:
«E como tudo que é coisa que promete / A gente vê-a como uma chiclete / Que se prova, mastiga e deita fora / Sem demora.
Como esta música é produto acabado / da sociedade de consumo imediato / Como tudo o que se comete nesta vida / Chiclete / Chiclete / Chiclete.
E nesta altura e com muita inquietação / Faço um reparo, quero abrir uma excepção / Um cassetete nunca será, não / Chiclete.
Chiclete / Chiclete / Chiclete (prova) / Chiclete (mastiga) / Chiclete (deita fora) / Chiclete (sem demora).»
ANTÓNIO A. DUARTE
PREFÁCIO DO LIVRO "25 ANOS DE ROCK'N PORTUGAL"